Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
instr<strong>um</strong>ento da devoção religiosa’, Grove, verbete<br />
sobre Bach, página 304... Nunca passei <strong>um</strong> <strong>do</strong>mingo”,<br />
ele continuou, com mais brandura, pensativo, ”sem ir à<br />
igreja, sem cantar no coro. Fui lá pela primeira vez com<br />
meu pai quan<strong>do</strong> comecei a andar, e continuei a ir<br />
depois <strong>que</strong> ele morreu, em 1955. Eu preciso ir”, disse<br />
com veemência. ”Se não for, vou acabar morren<strong>do</strong>.”<br />
”E você há de ir”, falei. ”Não sabíamos o <strong>que</strong> lhe<br />
estava faltan<strong>do</strong>”.<br />
A igreja não ficava longe <strong>do</strong> asilo, e Martin foi bem<br />
recebi<strong>do</strong> ao retornar — não só como <strong>um</strong> fiel membro da<br />
congregação e <strong>do</strong> coro, mas como o c<strong>é</strong>rebro e o<br />
conselheiro <strong>do</strong> coro, como seu pai fora antes dele.<br />
Com isso, sua vida teve <strong>um</strong>a mudança súbita e<br />
dramática. Martin reass<strong>um</strong>ira o lugar <strong>que</strong> lhe cabia, a<br />
seu ver. Ele podia cantar, podia render culto na música<br />
de Bach to<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>mingos, e tamb<strong>é</strong>m usufruir a<br />
serena autoridade <strong>que</strong> lhe era conferida.<br />
”Pois <strong>é</strong>”, ele me disse na consulta seguinte, sem<br />
petulância, mas como <strong>um</strong> fato da vida, ”eles sabem <strong>que</strong><br />
conheço toda a música litúrgica e coral de Bach.<br />
Conheço todas as cantatas de igreja—todas as<br />
202 relacionadas no Grove — e sei em <strong>que</strong> <strong>do</strong>mingos e<br />
dias santos elas devem ser cantadas. Somos a única<br />
igreja na diocese com <strong>um</strong>a or<strong>que</strong>stra e <strong>um</strong> coro de<br />
verdade, a única onde todas as obras vocais de Bach<br />
são cantadas regularmente. Executamos <strong>um</strong>a cantata<br />
to<strong>do</strong> <strong>do</strong>mingo — e vamos executar a Paixão segun<strong>do</strong><br />
Mateus esta Páscoa!”<br />
Para mim, era curioso e comovente <strong>que</strong> Martin, <strong>um</strong><br />
deficiente mental, tivesse por Bach a<strong>que</strong>la grande<br />
paixão. Bach parecia demasia<strong>do</strong> intelectual — e Martin<br />
era <strong>um</strong> simplório. O <strong>que</strong> só fui perceber depois <strong>que</strong><br />
comecei a levar para o asilo fitas gravadas das<br />
cantatas, e certa vez <strong>do</strong> Magnificai quan<strong>do</strong> fui vê-lo, era<br />
<strong>que</strong>, apesar de todas as suas limitações intelectuais, a<br />
inteligência musical de Martin era plenamente capaz de<br />
apreciar grande parte da complexidade t<strong>é</strong>cnica de