Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
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devoto. Ele sabia de cor o Grove dictionary of music and<br />
musicians [Dicionário Grove de música e músicos], a<br />
imensa edição em nove vol<strong>um</strong>es publicada em 1954 —<br />
de fato, Martin era <strong>um</strong> ”Grove ambulante”. Seu pai<br />
estava na <strong>é</strong>poca envelhecen<strong>do</strong> e meio enfermo, já não<br />
podia cantar ativamente, passan<strong>do</strong> a maior parte <strong>do</strong><br />
tempo em casa, ouvin<strong>do</strong> sua grande coleção de discos<br />
de canto no fonógrafo, examinan<strong>do</strong> e cantan<strong>do</strong> todas as<br />
suas partituras — o <strong>que</strong> fazia junto com seu filho, então<br />
com trinta anos (na mais estreita e afetuosa comunhão<br />
de suas vidas)—e len<strong>do</strong> em voz alta o dicionário Grove<br />
— todas as 6 mil páginas —, o qual, à medida <strong>que</strong> ele ia<br />
len<strong>do</strong>, gravava-se indelevelmente no córtex<br />
ilimitadamente retentivo, embora analfabeto, <strong>do</strong> filho.<br />
Dali por diante, a<strong>que</strong>le dicionário era ”ouvi<strong>do</strong>” na voz<br />
de seu pai — e Martin nunca podia lembrá-lo sem<br />
emoção.<br />
Essas prodigiosas hipertrofias da memória eid<strong>é</strong>tica,<br />
especialmente quan<strong>do</strong> empregadas ou exploradas<br />
”profissionalmente”, parecem às vezes expulsar o<br />
verdadeiro eu, ou competir com este e impedir seu<br />
desenvolvimento. E, se não há profundidade, se não há<br />
sentimento, tamb<strong>é</strong>m não há sofrimento nessas<br />
lembranças — por<br />
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isso, elas podem servir como ”fuga” da realidade. Isso<br />
claramente ocorria, em alto grau, como mnemonista de<br />
Luria, sen<strong>do</strong> descrito de maneira comovente no último<br />
capítulo de seu <strong>livro</strong>. Ocorria sem dúvida, em certo<br />
grau, com Martin A., Jos<strong>é</strong> e os gêmeos, mas era<br />
tamb<strong>é</strong>m, em cada caso, usa<strong>do</strong> para a realidade, e at<strong>é</strong><br />
mesmo ”superrealidade” — <strong>um</strong> senso <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
excepcional, intenso, místico...<br />
Poderes eid<strong>é</strong>ticos à parte, e quanto ao mun<strong>do</strong> de<br />
Martin em geral? Ele era, em muitos aspectos, pe<strong>que</strong>no,<br />
fútil, desagradável e escuro—o mun<strong>do</strong> de <strong>um</strong> retarda<strong>do</strong><br />
<strong>que</strong> fora ridiculariza<strong>do</strong> e excluí<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> criança, e<br />
quan<strong>do</strong> homem contrata<strong>do</strong> e despedi<strong>do</strong> com desprezo