Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
em empregos subalternos: o mun<strong>do</strong> de algu<strong>é</strong>m <strong>que</strong><br />
raramente se sentia, ou sentia <strong>que</strong> era visto, como <strong>um</strong>a<br />
criança ou homem adequa<strong>do</strong>.<br />
Ele com freqüência se mostrava infantil, às vezes<br />
mal<strong>do</strong>so, e propenso a súbitos acessos de raiva — e a<br />
linguagem <strong>que</strong> empregava nesses momentos era a de<br />
<strong>um</strong>a criança. ”vou jogar <strong>um</strong> bolo de lama na sua cara!”,<br />
ouvi-o gritar certa vez; ocasionalmente, ele cuspia ou<br />
batia. Ele fungava, andava sujo, limpava o nariz na<br />
manga — e nessas horas tinha a aparência (e sem<br />
dúvida os sentimentos) de <strong>um</strong>a criança pe<strong>que</strong>na e<br />
ranheta. Essas características infantis, rematadas por<br />
seu exibicionismo eid<strong>é</strong>tico irritante, provocaram a<br />
antipatia de to<strong>do</strong>s. Ele logo se tornou malquisto no<br />
asilo, e viu <strong>que</strong> a maioria <strong>do</strong>s residentes o evitava. Uma<br />
crise estava em andamento, com Martin regredin<strong>do</strong> a<br />
cada semana e a cada dia, e ningu<strong>é</strong>m a princípio<br />
saben<strong>do</strong> ao certo o <strong>que</strong> fazer. De início, o problema foi<br />
atribuí<strong>do</strong> a ”dificuldades de adaptação”, como as <strong>que</strong><br />
to<strong>do</strong> paciente pode ter ao deixar <strong>um</strong>a vida<br />
independente lá fora e ir para <strong>um</strong> ”asilo”. Mas a irmã<br />
achava <strong>que</strong> havia algo mais específico agin<strong>do</strong> —<br />
”alg<strong>um</strong>a coisa <strong>que</strong> o está atormentan<strong>do</strong>, <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie<br />
de fome, <strong>um</strong>a fome torturante <strong>que</strong> ele não consegue<br />
aplacar. Isso o está destruin<strong>do</strong>”, ela prosseguiu.<br />
”Temos de fazer alg<strong>um</strong>a coisa”.<br />
Assim, em janeiro, pela segunda vez, fui ver Martin —<br />
e encontrei <strong>um</strong> homem muito diferente: não mais<br />
petulante exibicionista como antes, mas claramente<br />
definhan<strong>do</strong>, com sofrimento físico e <strong>um</strong>a esp<strong>é</strong>cie de<br />
sofrimento espiritual.<br />
”O <strong>que</strong> foi?”, perguntei. ”Qual <strong>é</strong> o problema?” ”Eu<br />
preciso cantar”, disse ele com a voz rouca. ”Não posso<br />
viver sem isso. E não <strong>é</strong> só pela música — não posso<br />
rezar sem cantar”.<br />
211<br />
Então, subitamente, n<strong>um</strong> lampejo de sua velha<br />
memória, ele recitou: ’”A música, para Bach, era o