Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica ... - Stoa
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companhia se mu<strong>do</strong>u, no Lincoln Center, discretamente<br />
escondi<strong>do</strong> em meio aos n<strong>um</strong>erosos coros de Wagner e<br />
Verdi.<br />
Na<strong>que</strong>les momentos — nos oratórios e paixões<br />
principalmente, mas tamb<strong>é</strong>m nos coros e corais de<br />
igreja mais modestos —, quan<strong>do</strong> Martin ascendia com a<br />
música, es<strong>que</strong>cia <strong>que</strong> era ”retarda<strong>do</strong>”, es<strong>que</strong>cia toda a<br />
tristeza e desprazer de sua vida, sentia <strong>um</strong>a grande<br />
amplitude envolvê-lo, sentia-se <strong>um</strong> homem de verdade<br />
e <strong>um</strong> verdadeiro filho de Deus.<br />
O mun<strong>do</strong> de Martin — seu mun<strong>do</strong> interior—, <strong>que</strong> tipo<br />
de mun<strong>do</strong> era o dele? Ele tinha pouquíssimo<br />
conhecimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em<br />
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geral, ou pelo menos pouquíssimo conhecimento<br />
prático, e absolutamente nenh<strong>um</strong> interesse por ele. Se<br />
lhe fosse lida <strong>um</strong>a página de <strong>um</strong>a enciclop<strong>é</strong>dia ou <strong>um</strong><br />
jornal, ou se lhe fosse mostra<strong>do</strong> <strong>um</strong> mapa <strong>do</strong>s rios da<br />
Ásia ou <strong>do</strong> metrô de Nova York, tu<strong>do</strong> ficava registra<strong>do</strong>,<br />
instantaneamente, em sua memória eid<strong>é</strong>tica. Mas<br />
Martin não tinha relação com a<strong>que</strong>les registros<br />
eid<strong>é</strong>ticos — eles eram ”acêntricos”, no termo de<br />
Richard Wollheim, sem terem Martin, sem terem pessoa<br />
ou coisa alg<strong>um</strong>a como <strong>um</strong> centro vivo. Parecia haver<br />
pouca ou nenh<strong>um</strong>a emoção nessas recordações — não<br />
mais emoção <strong>do</strong> <strong>que</strong> a transmitida por <strong>um</strong> mapa da<br />
cidade de Nova York—e tampouco elas se relacionavam,<br />
ou ramificavam, ou ass<strong>um</strong>iam <strong>um</strong>a forma geral,<br />
qual<strong>que</strong>r <strong>que</strong> fosse. Assim, a memória eid<strong>é</strong>tica de<br />
Martin — sua parte anômala — não compunha, em si<br />
mesma, <strong>um</strong> ”mun<strong>do</strong>”, nem transmitia <strong>um</strong>a id<strong>é</strong>ia de <strong>um</strong><br />
mun<strong>do</strong>. Ela não tinha unidade, nem sentimento, nem<br />
relação com ele. Era algo fisiológico, tinha-se a<br />
impressão, como <strong>um</strong> centro ou banco de memória, mas<br />
não <strong>um</strong>a parte de <strong>um</strong> eu vivo, real e pessoal.<br />
E, no entanto, mesmo nesse aspecto havia <strong>um</strong>a única<br />
e surpreendente exceção, seu feito de memória ao<br />
mesmo tempo mais prodigioso, mais pessoal e mais