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tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

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Nesse momento emerge um <strong>no</strong>vo simbolismo. Roupas passam a ser emblema do velho<br />

e ilusório estilo de vida; a nudez vem a represent<strong>ar</strong> a rec<strong>é</strong>m-descoberta e efetiva<br />

verdade, e o ato de tir<strong>ar</strong> as roupas se torna um ato de libertação espiritual, de chegada<br />

à realidade. A moderna poesia erótica manipula esse tema, como o sabem gerações<br />

de moder<strong>no</strong>s amorosos, com alegre ironia; a moderna trag<strong>é</strong>dia penetra suas<br />

profundidades aterradoras e al<strong>ar</strong>mantes. M<strong>ar</strong>x pensa e trabalha na tradição trágica.<br />

P<strong>ar</strong>a ele, as roupas são laceradas, os v<strong>é</strong>us são rasgados, o processo da nudez <strong>é</strong><br />

violento e brutal, e apes<strong>ar</strong> disso o trágico movimento da história moderna em princípio<br />

conduz a um final feliz.<br />

A dial<strong>é</strong>tica da nudez <strong>que</strong> culmin<strong>ar</strong>á em M<strong>ar</strong>x <strong>é</strong> definida logo <strong>no</strong> início da era moderna,<br />

<strong>no</strong> Rei Le<strong>ar</strong> de Shakespe<strong>ar</strong>e. P<strong>ar</strong>a Le<strong>ar</strong>, a verdade nua <strong>é</strong> aquilo <strong>que</strong> o homem <strong>é</strong><br />

forçado a enfrent<strong>ar</strong> quando perdeu <strong>tudo</strong> o <strong>que</strong> os outros homens podem tir<strong>ar</strong>-lhe,<br />

exceto a própria vida. Vemos sua família voraz, impelida apenas pela vaidade cega,<br />

rasg<strong>ar</strong> seu v<strong>é</strong>u sentimental. Despido não só de poder político mas de qual<strong>que</strong>r vestígio<br />

de dignidade humana, ele <strong>é</strong> <strong>ar</strong>remessado porta afora, <strong>no</strong> meio da <strong>no</strong>ite, sob uma<br />

tempestade torrencial e aterradora. A isso, afinal, diz ele, <strong>é</strong> conduzida uma vida<br />

humana: o pobre e solitário abandonado <strong>no</strong> frio, enquanto os brutos e sórdidos<br />

desfrutam o calor <strong>que</strong> o poder pode proporcion<strong>ar</strong>. Tal conhecimento p<strong>ar</strong>ece ser<br />

demasiado p<strong>ar</strong>a nós: “A natureza humana não pode suport<strong>ar</strong> / A aflição nem o medo”.<br />

Por<strong>é</strong>m, Le<strong>ar</strong> não se verga às rajadas da tormenta, nem foge delas; em vez disso,,<br />

expõe-se à inteira fúria da tempestade, olha-a de frente e se afirma contra ela, ao<br />

passo <strong>que</strong> <strong>é</strong> <strong>ar</strong>remessado e vergastado. Enquanto<br />

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vaga na companhia do bobo (ato III, cena 4), eles encontram Edg<strong>ar</strong>, desprezado<br />

como um mendigo louco, completamente nu, ap<strong>ar</strong>entemente ainda mais<br />

desventurado do <strong>que</strong> ele. “Será o homem nada mais <strong>que</strong> isso?” — pergunta<br />

Le<strong>ar</strong>. “Tu <strong>é</strong>s a própria coisa: o homem desacomodado...” Então, <strong>no</strong> clímax da<br />

peça, ele rasga seu manto real — “Fora, fora, seus trastes imprestáveis” — e<br />

se junta ao “pobre Kent” em autêntica nudez. Esse gesto, <strong>que</strong> Le<strong>ar</strong> acredita tê-<br />

lo lançado <strong>no</strong> patam<strong>ar</strong> mais baixo da existência — “um pobre, descalço e<br />

desgraçado animal” — vem a ser, ironicamente, o primeiro passo na direção da<br />

humanidade plena, por<strong>que</strong>, pela primeira vez, ele reconhece a conexão entre ele<br />

mesmo e outro ser huma<strong>no</strong>. Esse reconhecimento habilita-o a crescer em<br />

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