26.04.2013 Views

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Restava-me apenas um rublo <strong>no</strong> bolso, e at<strong>é</strong> o princípio do mês faltavam<br />

ainda uns bons dez dias. E sabe o <strong>que</strong> fiz com esse dinheiro, <strong>que</strong>rida? No<br />

dia seguinte, a caminho da rep<strong>ar</strong>tição, entrei numa perfum<strong>ar</strong>ia e gastei o<br />

<strong>que</strong> me restava em perfumes e sabonetes fi<strong>no</strong>s. (...) E, al<strong>é</strong>m disso, ao<br />

inv<strong>é</strong>s de ir p<strong>ar</strong>a casa jant<strong>ar</strong>, fi<strong>que</strong>i rondando a casa da atriz, debaixo de<br />

sua janela. Ela morava <strong>no</strong> qu<strong>ar</strong>to and<strong>ar</strong> de uma casa na Nevski. Mais<br />

t<strong>ar</strong>de voltei p<strong>ar</strong>a casa, descansei um pouco, e logo retornei, plantandome<br />

<strong>no</strong>vamente debaixo das janelas. Assim prossegui por um mês e meio,<br />

seguindo-a, alugando c<strong>ar</strong>ruagens só p<strong>ar</strong>a conduzir-me de lá p<strong>ar</strong>a cá, nas<br />

imediações da casa. Em uma palavra: gastei nessas loucuras todo o meu<br />

ordenado e fui forçado a contrair dívidas; por fim, acabou-se a paixão, e<br />

comecei a ach<strong>ar</strong> enfadonha a<strong>que</strong>la corte. 18<br />

Se a Nevski <strong>é</strong> (como disse Gogol) a linha de comunicações de Petersburgo, então<br />

Devushkin abre o circuito, paga a chamada, mas não consegue fazer a ligação.<br />

Ele se prep<strong>ar</strong>a p<strong>ar</strong>a um encontro <strong>que</strong> será, ao mesmo tempo, pessoal e público;<br />

faz sacrifícios e se <strong>ar</strong>risca — imagine-se o pobre funcionário usando perfume<br />

francês! — , mas não consegue concretizá-lo. Os eventos cruciais de sua vida são<br />

coisas <strong>que</strong> não acontecem: coisas a <strong>que</strong> se entrega, elabora com o poder da<br />

imaginação, cerca sem cess<strong>ar</strong>, mas <strong>que</strong> lhe escapam na hora da verdade. Não <strong>é</strong><br />

de se admir<strong>ar</strong> <strong>que</strong> ele se enfade; e mesmo os leitores mais complacentes<br />

tenderão a ach<strong>ar</strong> Devushkin enfadonho.<br />

Gente Pobre dá voz aos funcionários pobres, por<strong>é</strong>m a voz ainda <strong>é</strong> trêmula e<br />

vacilante. Freqüentemente soa como a voz do shlemiehl clássico, uma das<br />

principais figuras do folclore e da literatura da Europa oriental (russos,<br />

poloneses e iídiches). Mas <strong>é</strong> tamb<strong>é</strong>m surpreendentemente semelhante à voz<br />

<strong>ar</strong>istocrática mais proeminente da literatura russa da d<strong>é</strong>cada de 1840; o “homem<br />

sup<strong>é</strong>rfluo”. Essa figura, a <strong>que</strong> Turguenev dá <strong>no</strong>me e elabora lindamente (“Diário<br />

de um homem sup<strong>é</strong>rfluo”, 1850; Rudin, 1856; os pais em Pais e Filhos, 1832), <strong>é</strong><br />

rica em inteligência, sensibilidade e talento, mas c<strong>ar</strong>ece de determinação p<strong>ar</strong>a<br />

trabalh<strong>ar</strong> e agir; transforma-se num shlemiehl. Mesmo quando deve herd<strong>ar</strong> o<br />

mundo. A política dos “homens sup<strong>é</strong>rfluos” da baixa <strong>no</strong>breza tendia a um<br />

liberalismo idealista, capaz de não se deix<strong>ar</strong> iludir pelas pretensões da<br />

autocracia e de simpatiz<strong>ar</strong> com as pessoas comuns, mas sem determinação p<strong>ar</strong>a<br />

lut<strong>ar</strong> por uma mudança radical. Esses liberais da d<strong>é</strong>cada de 1840 achavam-se<br />

imersos numa nuvem de depressão e fastio <strong>que</strong>, numa obra como Gente Pobre,<br />

fundiu-se a outra nuvem de desespero e fastio vinda de baixo.<br />

199<br />

206

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!