26.04.2013 Views

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

auto-respeito: seu “senso de dignidade<br />

200<br />

pessoal, de egoísmo necessário”. A classe dos funcionários pobres deverá vir a aceit<strong>ar</strong><br />

seus sapatos e pensamentos a ponto de o olh<strong>ar</strong> do outro — ou a ausência desse olh<strong>ar</strong><br />

— não os transform<strong>ar</strong> em pó. Então, e apenas então, serão capazes de se pôr na<br />

linha, na rua e na imprensa e cri<strong>ar</strong> uma verdadeira vida pública a p<strong>ar</strong>tir dos vastos<br />

espaços públicos de Petersburgo. Nesse momento, 1845, nenhum russo, real ou<br />

ficcional, pode imagin<strong>ar</strong> concretamente como isso poderá ocorrer. Todavia, Gente<br />

Pobre pelo me<strong>no</strong>s define o problema — um problema crucial na política e cultura russa<br />

— e possibilita aos russos da d<strong>é</strong>cada de 1840 imagin<strong>ar</strong> <strong>que</strong> a mudança ocorrerá, de<br />

alguma forma, algum dia.<br />

No segundo romance de Dostoievski, O Sósia, publicado um a<strong>no</strong> depois, o herói, outro<br />

funcionário do gover<strong>no</strong>, se prep<strong>ar</strong>a p<strong>ar</strong>a um grande gesto de auto-apresentação na<br />

Nevski. Con<strong>tudo</strong>, esse gesto vem a ser tão desproporcional aos recursos reais, políticos<br />

e psicológicos, do sr. Goliadkin, <strong>que</strong> se transforma num pesadelo biz<strong>ar</strong>ro <strong>que</strong> o impele<br />

p<strong>ar</strong>a um redemoinho de p<strong>ar</strong>anóia, <strong>no</strong> qual será atirado p<strong>ar</strong>a a frente e p<strong>ar</strong>a trás por<br />

150 páginas excruciantes, at<strong>é</strong> ser, finalmente, misericordiosamente, tragado.<br />

Quando a história começa, Goliadkin acorda, deixa seu qu<strong>ar</strong>to estreito e miserável e<br />

sobe a uma magnífica c<strong>ar</strong>ruagem, descrita em detalhes, <strong>que</strong> ele alugou por a<strong>que</strong>le dia.<br />

Manda <strong>que</strong> o cocheiro o conduza ao escritório passando pela Nevski, deixa as janelas<br />

abertas e sorri benignamente p<strong>ar</strong>a a multidão de pedestres na rua. Por<strong>é</strong>m, de súbito, <strong>é</strong><br />

reconhecido por dois jovens colegas de escritório, metade de sua idade e seus iguais em<br />

c<strong>ar</strong>go. Os dois acenam, chamam seu <strong>no</strong>me, e Goliadkin, tomado de pavor, se encolhe<br />

<strong>no</strong> canto mais escuro da c<strong>ar</strong>ruagem (vemos aí o duplo papel dos veículos <strong>no</strong> tráfego da<br />

cidade: p<strong>ar</strong>a a<strong>que</strong>les <strong>que</strong> têm autoconfiança ou confiança de classe, os veículos são<br />

fortalezas protegidas de onde se domina a massa de pedestres; p<strong>ar</strong>a a<strong>que</strong>les <strong>que</strong><br />

c<strong>ar</strong>ecem de confianças, os veículos são <strong>ar</strong>madilhas, gaiolas, cujos ocupantes se tornam<br />

extremamente vulneráveis ao relance fatal de qual<strong>que</strong>r assassi<strong>no</strong>). 19 Logo em seguida,<br />

algo ainda pior acontece: a c<strong>ar</strong>ruagem de seu chefe fica lado a lado da sua. “Goliadkin,<br />

percebendo <strong>que</strong> Andrei Filipovich o tinha reconhecido, <strong>que</strong> ele agora o contemplava de<br />

olhos <strong>ar</strong>regalados e <strong>que</strong> não havia onde se esconder, enru-besceu at<strong>é</strong> as orelhas.” A<br />

resposta aterrorizada de Goliadkin ao olh<strong>ar</strong> do chefe o lev<strong>ar</strong>á, por uma fronteira<br />

invisível, à loucura, <strong>que</strong> o engolirá por inteiro <strong>no</strong> final:<br />

208

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!