26.04.2013 Views

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

qu<strong>ar</strong>to e corta a g<strong>ar</strong>ganta.<br />

Qual <strong>é</strong> o significado da trag<strong>é</strong>dia do <strong>ar</strong>tista e da f<strong>ar</strong>sa do soldado? O n<strong>ar</strong>rador<br />

sugere um sentido <strong>no</strong> final da história: “Oh, não confie <strong>no</strong> Projeto Nevski”. Mas aí<br />

existem ironias girando <strong>no</strong> interior de ironias. “Eu sempre me envolvo mais em<br />

minha capa quando lá adentro e tento<br />

192<br />

não contempl<strong>ar</strong> os objetos <strong>que</strong> encontro.” A ironia aí reside <strong>no</strong> fato de <strong>que</strong> o n<strong>ar</strong>rador,<br />

nessas últimas cinqüenta páginas, nada mais fez <strong>que</strong> contempl<strong>ar</strong> os objetos e<br />

apresentá-los ao olh<strong>ar</strong> do leitor. Ele prossegue nesse m<strong>é</strong>todo e conclui a história<br />

ap<strong>ar</strong>entemente negando-a. “Não olhe p<strong>ar</strong>a as vitrinas: as quinquilh<strong>ar</strong>ias <strong>que</strong> exibem são<br />

adoráveis, mas cheiram a casos amorosos.” Casos amorosos são, <strong>é</strong> cl<strong>ar</strong>o, o assunto da<br />

história. “Você acha <strong>que</strong> a<strong>que</strong>las damas ... mas não confie nelas absolutamente. Que o<br />

Senhor o impeça de ver as bordas de seus chap<strong>é</strong>us. Por mais sedutor <strong>que</strong> seja o<br />

manto <strong>no</strong> qual flutua uma bela mulher, não deix<strong>ar</strong>ia <strong>que</strong> minha curiosidade a seguisse<br />

por nada <strong>no</strong> mundo. E, pelo amor de Deus, mantenha-se afastado da luz! e passe por<br />

ela tão rápido quanto possível!” Pois — e assim a história termina —<br />

O Projeto Nevski sempre mente, por<strong>é</strong>m mais do <strong>que</strong> nunca quando a massa<br />

espessa da <strong>no</strong>ite o envolve e ressalta as p<strong>ar</strong>edes am<strong>ar</strong>elas e brancas das casas,<br />

e quando toda a cidade se faz b<strong>ar</strong>ulhenta e deslumbrante, e incontáveis<br />

c<strong>ar</strong>ruagens andam pela rua, e postilhões gritam e montam em seus cavalos, e<br />

o próprio demônio p<strong>ar</strong>ece acender as luzes a fim de <strong>tudo</strong> mostr<strong>ar</strong> sob uma luz<br />

irreal.<br />

Citei o final na íntegra por<strong>que</strong> ele mostra Gogol, o autor por detrás do n<strong>ar</strong>rador,<br />

brincando com os leitores de uma forma fascinante. No ato de neg<strong>ar</strong> seu amor pelo<br />

Projeto Nevski, o autor o representa; mesmo quando execra a cidade por seu falso<br />

encanto, ele a apresenta da forma mais sedutora. O n<strong>ar</strong>rador p<strong>ar</strong>ece desconhecer o<br />

<strong>que</strong> diz ou faz, por<strong>é</strong>m <strong>é</strong> evidente <strong>que</strong> o autor sabe. De fato, essa ironia ambivalente<br />

acab<strong>ar</strong>á por ser uma das principais atitudes p<strong>ar</strong>a com a cidade moderna. Repetidas<br />

vezes, na literatura, na cultura popul<strong>ar</strong>, em <strong>no</strong>ssa conversa cotidiana, encontr<strong>ar</strong>emos<br />

vozes como essa: quanto mais o falante condena a cidade, mais vividamente a evoca,<br />

mais atraente ela se lhe torna; quanto mais ele se afasta dela, mais profundamente se<br />

identifica com ela, mais cl<strong>ar</strong>amente mostra <strong>que</strong> não pode viver sem ela. A denúncia<br />

<strong>que</strong> Gogol faz da Nevski <strong>é</strong> ela mesma uma forma de “me envolver mais em minha capa”<br />

— uma forma de encobrimento e disf<strong>ar</strong>ce —, mas ele se deixa ver espreitando<br />

199

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!