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tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

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assuntos mais elevados.” (II, 156-58) Essa “alma tímida freqüentadora de concertos,<br />

pertencente ao mundo de framboesa dos contrabaixos e bordões” (V, 173), <strong>é</strong> um judeu,<br />

mas tamb<strong>é</strong>m, em sua imaginação, um hele<strong>no</strong>; seu sonho mais c<strong>ar</strong>o <strong>é</strong> obter um posto<br />

diplomático me<strong>no</strong>r na embaixada russa na Gr<strong>é</strong>cia, onde pudesse servir de tradutor-e<br />

int<strong>é</strong>rprete entre dois mundos; mas <strong>é</strong> pessimista sobre seu futuro, pois sabe <strong>que</strong> não<br />

dispõe da árvore genealógica apropriada. P<strong>ar</strong><strong>no</strong>k fic<strong>ar</strong>ia feliz se o deixassem goz<strong>ar</strong><br />

seus sonhos de Petersburgo (assim como Mandelstam, ao <strong>que</strong> p<strong>ar</strong>ece), mas<br />

Petersburgo não permitirá <strong>que</strong> o faça. Sentado em uma cadeira de dentista numa linda<br />

manhã de verão, enquanto fita atrav<strong>é</strong>s da janela <strong>que</strong> se abre p<strong>ar</strong>a a rua Gorokhovaia,<br />

descobre, horrorizado, o <strong>que</strong> p<strong>ar</strong>ece ser uma multidão prestes a linch<strong>ar</strong> algu<strong>é</strong>m na rua<br />

(IV, 163-69). Ap<strong>ar</strong>entemente, uma pessoa foi surpreendida roubando um relógio de<br />

outra. A turba c<strong>ar</strong>rega o culpado em procissão solene: prep<strong>ar</strong>a-se p<strong>ar</strong>a lançá-lo <strong>no</strong><br />

canal do Fontanka.<br />

Podia-se dizer <strong>que</strong> essa figura (o prisioneiro) não tinha face? Não, havia uma,<br />

embora as faces na multidão não tenham significado; apenas as nucas e orelhas<br />

têm vida independente.<br />

Assim avançavam os ombros, como um cabide estofado, o casaco de segunda<br />

mão ricamente coberto de caspa, as nucas irritadas e as orelhas caninas.<br />

A fragmentação das pessoas atrav<strong>é</strong>s do dinamismo da rua <strong>é</strong> um tema famili<strong>ar</strong> do<br />

modernismo de Petersburgo. Vimo-lo pela primeira vez em O Projeto Nevski de Gogol;<br />

ap<strong>ar</strong>ece re<strong>no</strong>vado <strong>no</strong> s<strong>é</strong>culo XX graças a Alexander Blok, Bieli e Maiakovski, aos<br />

pintores cubistas e futuristas, e Einseinstein em Outubro, sua fábula de Petersburgo de<br />

1927. Mandelstam adapta essa experiência visual modernista, mas lhe confere uma<br />

dimensão moral at<strong>é</strong> então ausente. Enquanto P<strong>ar</strong><strong>no</strong>k observa a rua em movimento, ela<br />

está desumanizando as pessoas <strong>que</strong> aí se encontram, ou melhor, está lhes dando uma<br />

oportunidade de se de-sumaniz<strong>ar</strong>em a si próprias, de se despirem de suas faces e,<br />

portanto, da responsabilidade pessoal por suas ações. Faces e pessoas são submersas<br />

na “terrível ordem <strong>que</strong> as fundia numa turba”. P<strong>ar</strong><strong>no</strong>k entende <strong>que</strong> qual<strong>que</strong>r um <strong>que</strong><br />

tente enfrent<strong>ar</strong> essa multidão ou ajud<strong>ar</strong> esse homem “ver-se-á tamb<strong>é</strong>m em apuros, será<br />

visto como suspeito, decl<strong>ar</strong>ado fora-da-lei e <strong>ar</strong>rastado p<strong>ar</strong>a a praça vazia”. Não<br />

obstante, ele salta de seu poleiro acima da rua — “P<strong>ar</strong><strong>no</strong>k rodopia como um pião pela<br />

escada de c<strong>ar</strong>acol, deixando o est<strong>ar</strong>recido dentista diante da naja adormecida de sua<br />

broca” — e mergulha em meio à multidão. “P<strong>ar</strong><strong>no</strong>k corre, tropeçando ao longo das<br />

pedras do calçamento com os pe<strong>que</strong><strong>no</strong>s cascos<br />

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