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tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

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Baudelaire <strong>no</strong>s mostra alguns dos seus efeitos mais <strong>no</strong>táveis. P<strong>ar</strong>a os amantes, como<br />

a<strong>que</strong>les de “Os Olhos dos Pobres”, os bulev<strong>ar</strong>es cri<strong>ar</strong>am uma <strong>no</strong>va cena primordial:<br />

um espaço privado, em público, onde eles podiam dedic<strong>ar</strong>-se à própria intimidade,<br />

sem est<strong>ar</strong> fisicamente sós. Movendo-se ao longo do bulev<strong>ar</strong>, capturados <strong>no</strong> seu imenso<br />

e interminável fluxo, podiam sentir seu amor mais intenso do <strong>que</strong> nunca, como ponto de<br />

referência de um mundo em transformação. Poderiam exibir seu amor diante do<br />

interminável desfile de estrangeiros do bulev<strong>ar</strong> — de fato, em uma geração P<strong>ar</strong>is se<br />

torn<strong>ar</strong>ia mundialmente famosa por essa esp<strong>é</strong>cie de exibicionismo amoroso —, haurindo<br />

deles diferentes formas de alegria. Podiam tecer v<strong>é</strong>us de fantasia a propósito da<br />

multidão de passantes: <strong>que</strong>m eram essas pessoas, de onde vinham e p<strong>ar</strong>a onde iam,<br />

o <strong>que</strong> <strong>que</strong>riam, o <strong>que</strong> amavam? Quanto mais observavam os outros e quanto mais se<br />

deixavam observ<strong>ar</strong><br />

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— quanto mais p<strong>ar</strong>ticipavam da “família de olhos” sempre em expansão —, mais rica se<br />

tornava sua visão de si mesmos.<br />

Nesse ambiente, a realidade facilmente se tornava mágica e sonhadora. As luzes<br />

ofuscantes da rua e do caf<strong>é</strong> apenas intensificavam a alegria: nas gerações seguintes, o<br />

advento da eletricidade e do neon só f<strong>ar</strong>ia aument<strong>ar</strong> tal intensidade. At<strong>é</strong> as mais<br />

extremas vulg<strong>ar</strong>idades, como a<strong>que</strong>las ninfas do caf<strong>é</strong>, com as cabeças ornadas de<br />

frutas e guloseimas, tornavam-se adoráveis em seu romântico esplendor. Quem <strong>que</strong>r<br />

<strong>que</strong> já tenha estado apaixonado em uma grande cidade conhece bem a sensação,<br />

celebrada em centenas de canções sentimentais. De fato, essa alegria privada brota<br />

diretamente da modernização do espaço público urba<strong>no</strong>. Baudelaire <strong>no</strong>s mostra um<br />

<strong>no</strong>vo mundo, privado e público, <strong>no</strong> instante exato em <strong>que</strong> este surge. Desse momento<br />

em diante, o bulev<strong>ar</strong> será tão importante como a alcova na consecução do amor<br />

moder<strong>no</strong>.<br />

Con<strong>tudo</strong>, cenas primordiais, p<strong>ar</strong>a Baudelaire, como mais t<strong>ar</strong>de p<strong>ar</strong>a Freud, não podem<br />

ser idílicas. Elas devem conter material idílico, mas <strong>no</strong> clímax da cena uma realidade<br />

reprimida se interpõe, uma revelação ou descoberta tem lug<strong>ar</strong>: “um <strong>no</strong>vo bulev<strong>ar</strong>, ainda<br />

atulhado de detritos (...) exibia seus infinitos esplendores”. Ao lado do brilho, os<br />

detritos: as ruínas de uma dúzia de velhos bairros — os mais escuros, mais densos,<br />

mais deteriorados e mais assustadores bairros da cidade, l<strong>ar</strong> de dezenas de milh<strong>ar</strong>es<br />

de p<strong>ar</strong>isienses — se amontoavam <strong>no</strong> chão. P<strong>ar</strong>a onde iria toda essa gente? Os<br />

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