26.04.2013 Views

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

tudo que é sólido desmancha no ar - Comunicação, Esporte e Cultura

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Ainda <strong>que</strong> Devushkin quisesse, simplesmente não havia meio de o funcionário pobre<br />

lut<strong>ar</strong> na d<strong>é</strong>cada de 1840. Por<strong>é</strong>m, havia algo <strong>que</strong> talvez pudesse fazer: escrever. À<br />

medida <strong>que</strong> abre seu coração, mesmo p<strong>ar</strong>a algu<strong>é</strong>m <strong>que</strong> não está ouvindo, Devushkin<br />

começa a perceber <strong>que</strong> tem algo p<strong>ar</strong>a dizer. Afinal, não <strong>é</strong> ele um homem tão<br />

representativo como qual<strong>que</strong>r outro em Petersburgo? Ao inv<strong>é</strong>s da tag<strong>ar</strong>elice escapista<br />

e sentimental <strong>que</strong> passa por literatura — fantasias de espadas retinindo, cavalos<br />

galopando e virgens raptadas em meio à <strong>no</strong>ite — por <strong>que</strong> não confront<strong>ar</strong> o público com<br />

a vida interior real de um petersbur-guense seu semelhante? Nesse momento, a<br />

imagem do Projeto Nevski cresce em sua mente e o devolve à sua humilde posição:<br />

Mas <strong>que</strong> aconteceria?... Por<strong>que</strong>, p<strong>ar</strong>a dizer a verdade, às vezes me entra<br />

essa id<strong>é</strong>ia na cabeça. (...) Que aconteceria se eu tamb<strong>é</strong>m cismasse de<br />

escrever? Suponha, só por um minuto, <strong>que</strong> um livro foi publicado. Você o<br />

apanha ele: “Poesias, de Mak<strong>ar</strong> Devushkin”. Que pens<strong>ar</strong>ia, hein? De<br />

minha p<strong>ar</strong>te, <strong>que</strong>rida, g<strong>ar</strong>anto <strong>que</strong> desde o momento e hora em <strong>que</strong><br />

ap<strong>ar</strong>ecesse meu livro, já não ous<strong>ar</strong>ia apresent<strong>ar</strong>-me na Nevski. Como me<br />

sentiria quando as pessoas dissessem: “Olhem, aí vem o poeta Devushkin<br />

em pessoa!” Como me <strong>ar</strong>ranj<strong>ar</strong>ia com os meus sapatos, então? Pois deve<br />

saber, <strong>que</strong>rida, <strong>que</strong> eles, e tamb<strong>é</strong>m as solas, andam sempre remendados<br />

e não são decentes de se ver. E <strong>que</strong> f<strong>ar</strong>ia eu, se todo o mundo soubesse<br />

<strong>que</strong> o poeta Devushkin calça sapatos remendados? Suponha <strong>que</strong><br />

alguma du<strong>que</strong>sa ou condessa os <strong>no</strong>tasse. Que diria ela de mim? É bem<br />

possível <strong>que</strong> ela nem os <strong>no</strong>tasse, pois não creio <strong>que</strong> as du<strong>que</strong>sas e<br />

condessas se interessem por sapatos, muito me<strong>no</strong>s pelos sapatos de um<br />

funcion<strong>ar</strong>iozinho (afinal de contas, há sapatos e sapatos).<br />

P<strong>ar</strong>a um funcionário letrado e sensível, por<strong>é</strong>m comum e pobre, o Projeto Nevski e a<br />

literatura russa representam a mesma promessa enga<strong>no</strong>sa: uma linha na qual todos os<br />

homens podem se comunic<strong>ar</strong> livremente e se reconhecer igualmente. Con<strong>tudo</strong>, na<br />

Rússia da d<strong>é</strong>cada de 1840, uma sociedade <strong>que</strong> combina moder<strong>no</strong>s meios de<br />

comunicação de massa e relações sociais feudais, essa promessa <strong>é</strong> uma zomb<strong>ar</strong>ia<br />

cruel. Os meios de comunicação <strong>que</strong> p<strong>ar</strong>ecem unir as pessoas — rua e imprensa —<br />

apenas dramatizam a e<strong>no</strong>rmidade do abismo entre elas.<br />

O funcionário de Dostoievski teme apenas duas coisas: de um lado, <strong>que</strong> “alguma<br />

du<strong>que</strong>sa ou condessa”, a classe dominante <strong>que</strong> governa a vida da rua e a vida cultural,<br />

se ria dele, de seus sapatos remendados, de sua alma esf<strong>ar</strong>rapada; de outro — e isso<br />

provavelmente seria ainda pior —, <strong>que</strong> seus superiores nem se apercebam de suas<br />

solas (“afinal de contas, há sapatos e sapatos”) ou de sua alma. Qual<strong>que</strong>r uma<br />

dessas possibilidades pode de fato ocorrer: o funcionário não pode govern<strong>ar</strong> as<br />

respostas dos governantes. Aquilo <strong>que</strong> realmente cai sob sua jurisdição <strong>é</strong> seu próprio<br />

207

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!