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O TEMPO NA DIREÇÃO DO TRATAMENTO

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irmão “Flávio”. Como ainda não dispõe<br />

de um vocabulário adequado e da possibilidade<br />

da escrita, ela se utiliza de outros<br />

recursos para expressar a sua dor diante<br />

da ameaça de perder seu valor fálico no<br />

desejo do Outro, assim como perder<br />

seus objetos agalmáticos, fontes de<br />

prazer oral. Mostrando-se enciumada e<br />

entristecida, Jane exclama indignada:<br />

“Mamãe vai dar minha mamadeira e<br />

chupeta para o neném!”.<br />

Por outro lado, João, convoca a analista<br />

em casa. Em virtude de uma queda que<br />

deixou-o hospitalizado durante cerca de<br />

40 dias, sente-se inseguro para sair de<br />

casa sozinho. Angustiado, questiona “se<br />

este sintoma é orgânico, mental ou depressão”.<br />

Relata que por ocasião de sua<br />

internação, seu filho, que já estava doente,<br />

faleceu em outro hospital. Assim não<br />

teve a chance de acompanhá-lo nos seus<br />

últimos momentos de vida. Refere sentir<br />

muita falta dele, com quem contava nos<br />

momentos de doença. Em análise, este<br />

sujeito desfila os significantes de sua história<br />

pessoal de maneira fluente, falando<br />

também dos déficits auditivo, visual e olfativo,<br />

decorrentes de sua idade<br />

avançada. Mesmo apresentando essas<br />

limitações, acha que sua produção<br />

intelectual não foi afetada, mantendo um<br />

hábito antigo: escrever artigos para um<br />

jornal. Significantes não lhe faltam para<br />

contar suas histórias, as quais procura<br />

ilustrar por meio de fotos, flashes<br />

familiares, onde aponta vários parentes<br />

mortos, destacando a mãe, o pai e irmã<br />

prefererida, assim como cenas da<br />

natureza destruída pelo tempo e/ou<br />

transformada pela mão do homem.<br />

Em uma sessão, João acha a analista<br />

parecida com a namorada do filho<br />

morto, dizendo: “Ela é clara, loura, assim<br />

como você.” Associando livremente,<br />

conta que sempre ia à uma lanchonete,<br />

próxima à sua casa, mas que agora teme<br />

voltar lá sozinho. Quando foi nomear tal<br />

local, num ato falho, disse o nome do<br />

shopping onde o filho costumava levar a<br />

namorada “clara”, indicando aqui sua<br />

identificação com o filho morto. Esta<br />

manifestação do inconsciente, nos leva a<br />

pensar na transferência. Quem sabe João<br />

não deseja a analista como parceira, a<br />

namorada “clara”, para se sentir-se<br />

amparado e voltar a caminhar com<br />

firmeza em direção à vida? Com muita<br />

dificuldade diante da perda real e<br />

traumática do filho, para qual João não<br />

tem palavras para expressar, (o simbólico<br />

não dá conta integralmente), ele vai<br />

contando outras histórias, inclusive sobre<br />

as mulheres. Diz ele: “As mulheres de<br />

hoje andam com partes dos seios de fora<br />

se oferecendo como objetos de desejo<br />

descartáveis, que não servem para serem<br />

mães e esposas”. Paradoxalmente, escreve<br />

artigos enaltecendo a mulher, colocandoa<br />

como presença imprescindível na vida<br />

do homem.<br />

Dois sujeitos tentam construir com os<br />

significantes “triste, filho, nascimento,<br />

morte, mãe, pai e irmãos”, cada um a seu<br />

modo, seus romances familiares. Tanto<br />

um quanto o outro se defrontam com<br />

sentimentos de perda e angústia de castração.<br />

Jane se angustia frente à possibilidade<br />

de perder o amor do Outro paterno<br />

e materno e com a separação de seus objetos<br />

de prazer. Sentindo-se desamparada,<br />

busca o simbólico para dar conta do real<br />

que a acomete. Segundo Colette Soler:<br />

“... cada criança se faz intérprete,<br />

se agarra em estabelecer sua<br />

própria leitura do dizer do Outro,<br />

e da mãe, principalmente [...] das<br />

hiâncias do seu discurso. Ela está<br />

evidentemente interessada em seu<br />

próprio ser, já que o que busca<br />

perfurar aí, é tanto o mistério de<br />

sua concepção quanto o de seu<br />

sexo. O interpretado se torna,<br />

pois, intérprete, e é neste nó das<br />

interpretações que jaz o segredo<br />

de todas as suas interpretações 263 ”.<br />

A questão do ser: quem sou eu para<br />

que o Outro me fale? O que eu sou<br />

como objeto? Na resposta da linguagem<br />

está a questão daquilo que eu sou, pois<br />

eu só tenho acesso ao meu ser como<br />

efeito do dito. É no campo da linguagem<br />

que se constitui o dito sem existência<br />

teórica, o que chamamos lalangue, “alín-<br />

263<br />

SOLER, C. “A criança Interpretada” in: Revista<br />

Carrossel, ano I, no 0, 1997, p. 18.<br />

Heteridade 7<br />

Internacional dos Fóruns-Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano 210

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