O TEMPO NA DIREÃÃO DO TRATAMENTO
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aglomerado de significantes em torno de<br />
dois espaços vazios e que o vazio central<br />
comunica-se com o exterior. O motivo<br />
da impossibilidade dessa representação<br />
central não reside simplesmente no fato<br />
dela ser demasiado traumática, mas de<br />
que nós, sujeitos que a consideramos,<br />
continuamos sempre implicados nela e<br />
fazemos parte integrante do processo<br />
que a engendrou (Zizec, 2004). Assim<br />
como o real da história resiste à<br />
historização, o real do tempo resiste à<br />
cronologização. Em “Função e campo”,<br />
Lacan já observava que “o que se realiza<br />
em minha história não é o pretérito<br />
perfeito do que foi, uma vez que já não é<br />
[...] mas o futuro anterior do que terei<br />
sido para aquilo em que me estou<br />
transformando” (1953/1998:301). Há<br />
uma excessiva proximidade do sujeito<br />
com o irrepresentável. Pois o sujeito só<br />
se comunica com o Outro real – o que<br />
nos ensina Lacan no seminário, livro 10 –<br />
no ápice da angústia. Este momento de<br />
queda do objeto a configura-se como<br />
“um nó do tempo como superfície” , um<br />
retorno do instante do olhar no<br />
momento de concluir, que decide,<br />
retroativamente, o tempo para<br />
compreender.<br />
Yukio Mishima , um dos autores mais<br />
traduzidos da moderna literatura japonesa,<br />
inicia seu livro Confissões de uma<br />
máscara com a seguinte frase: “Por um<br />
bom tempo, insisti em que tinha<br />
lembrança de cenas do meu próprio<br />
nascimento”. Em seguida desfia uma<br />
série de lembranças de sua primeira<br />
infância, cenas que “o atormentaram e<br />
assombraram a vida inteira” e que teriam<br />
imprimido nele um desejo de<br />
transformar-se em um outro, que tanto<br />
podia ser um “rapaz todo sujo”<br />
carregando baldes de excrementos e vestindo<br />
uma calça muito justa, quanto uma<br />
bailarina opulenta “ envolta em trajes semelhantes<br />
aos da meretriz do livro do<br />
Apocalipse”.<br />
Em nota enviada ao editor, o jovem<br />
Mishima, então com vinte e quatro anos,<br />
observa que Confissões de uma máscara<br />
será seu primeiro romance autobiográfico,<br />
mas não um “Ich-roman convencional”.<br />
E acrescenta: “Apontarei para mim<br />
o bisturi da análise psicológica que agucei<br />
em personagens imaginários. Tentarei<br />
dissecar-me bem vivo. Espero atingir a<br />
exatidão científica...” (apud Ritter,<br />
2005:28). Diz-se que sua escrita é<br />
também uma tentativa terapêutica que<br />
faz apelo ao que ele designa como<br />
“poderes de auto-análise” ou “um desses<br />
círculos obtidos dando um simples<br />
movimento de torção a um pedaço de<br />
papel, cujas extremidades são em seguida<br />
coladas juntas. O que parecia ser o<br />
interior era o exterior e o que parecia ser<br />
o exterior era o interior” (idem: 29). Não<br />
há dúvida de que Mishima percebeu o<br />
interesse da topologia da banda de<br />
Mœbius na análise dos fatos subjetivos,<br />
ao mesmo tempo em que dizia possuir<br />
um “talento perverso” capaz de<br />
“transmudar o sofrimento em gozo e a<br />
falta em plenitude”. Para Millot<br />
(1996/2004), seu talento inscreve-se na<br />
linha direta do masoquismo originário,<br />
dito erógeno, sob a forma de um “erotismo<br />
da desolação”. Já Assoun, após concluir<br />
que “raramente se verá, como em<br />
Mishima, a identificação de um escritor<br />
com uma estrutura transformada em<br />
princípio de escrita” (1998:15), propõe<br />
que “não é talvez uma casualidade se, depois<br />
de uma momento ainda observável<br />
no século passado em que a literatura se<br />
distinguia como refúgio neurótico, a literatura<br />
(pós)moderna acaba servindo para<br />
trazer à cena a subjetividade perversa”<br />
(Idem:18).<br />
Lembremos, para terminar, que, assim<br />
como a mascarada feminina não é uma<br />
mentira ou uma falsa imagem de mulher,<br />
mas, como assinala Lacan, o “prestar-se à<br />
perversão d’O homem” (Lacan 1973,<br />
p.71) que nela encontrará a sua hora de<br />
verdade e poderá chegar ao álibi fálico do<br />
orgasmo, também a mascarada perversa,<br />
ao fazer-se letra e, até, literatura, prestase<br />
à perversão do Outro.<br />
Mishima preparou cuidadosamente o<br />
seppuku como morte televisionado. Confirmou<br />
suas palavras de que “a morte<br />
violenta é a beleza suprema, contanto<br />
que aquele que morre seja jovem.”<br />
Heteridade 7<br />
Internacional dos Fóruns-Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano 224