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O TEMPO NA DIREÇÃO DO TRATAMENTO

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se agarram “ao seu tempo”. Por essa via,<br />

qual o tempo do Alzheimer? De imediato<br />

poderíamos responder; é um fora do<br />

tempo de uma memória que se apaga,<br />

mas qual memória se apaga?<br />

Da clínica com sujeitos diagnosticados<br />

com Alzheimer ou com suspeita dessa<br />

patologia, depreendi a existência de um<br />

ponto singular, já que todo desencadeamento<br />

passa pelo sujeito, que toca um<br />

rombo na relação com o Outro e que,<br />

sem um trabalho de luto- movimento<br />

que permite enlaçar os tempos, abrindo<br />

as vias ao desejo-, provoca o<br />

desenlaçamento do tempo e da vida. Sem<br />

as emendas às suturas-, possibilitando<br />

que R.S.I mantenham-se juntos sem se<br />

confundirem-, no Alzheimer prevalece a<br />

perda gradativa da cadeia e,<br />

consequentemente, a mistura dos tempos<br />

e uma indistinção avassaladora entre RSI.<br />

Sem essas amarras o sujeito tende a se<br />

agarrar a um passado conhecido, como<br />

medida protetora contra um real<br />

devastador. Sem os meios simbólicos e<br />

imaginários e, portanto, sem retenção do<br />

simbólico e imaginário, persiste um real<br />

do tempo que desliza. Restam apenas<br />

fragmentos de cada registro, sem relação<br />

entre si. Um sujeito com 93 anos acentua<br />

que depois da perda do marido começou<br />

a esquecer os nomes das coisas. Afásica<br />

para alguns nomes cotidianos, tenta enlaçar<br />

com muitos fios sua história de amor,<br />

tempo que não se apaga, à vida que<br />

continua.<br />

Como falar na falta dos referentes?<br />

Como pensar sem as palavras? Insiste em<br />

falar pelas lembranças, mas não todas;<br />

não quer se lembrar da perda, mas<br />

apenas do que vive do objeto amado.<br />

Talvez como Garcia Márquez e<br />

Yourcenar, pudéssemos pensar que “(...)<br />

a memória dos homens assemelha os<br />

viajantes fatigados que se desfazem das<br />

bagagens inúteis a cada pausa do<br />

caminho” (Yourcenar, 1983,p.17), mas<br />

não é possível desfazermos de tudo. “Se<br />

ao menos pudesse sonhar com ele!”.<br />

Tempo real do sonho, onde o objeto<br />

perdido pode retornar tal como foi, sem<br />

os limites dos tempos que corroem até as<br />

lembranças. Mesmo com afasias esse<br />

sujeito agarra-se às lembranças que lhe<br />

interessam e isto não a deixa sair do<br />

tempo. Para outros, ao contrário, na falta<br />

do espaço para o luto, o buraco aberto<br />

com as perdas (marcadas inicialmente,<br />

sobretudo, no corpo, com buracos<br />

substanciais sobre a consistência imaginária)<br />

e o domínio de um real sem o<br />

amparo do simbólico e imaginário, impera<br />

a demissão dos tempos com recuo ao<br />

tempo primordial, real.<br />

Observa-se que no final dessa via<br />

crucis dos tempos, vários sujeitos<br />

retornam ao tempo do balbucio,<br />

pequenos sons conhecidos, pequenas<br />

letras tocadas como música, frases<br />

escutadas, traços que marcados não<br />

morrem jamais e encontram-se ainda<br />

disponíveis, mas sem os recursos da<br />

tradução e da amarração. Se Joyce pode<br />

corrigir os erros do enodamento entre<br />

RSI pelo sinthoma de sua escrita, dirigindo-se<br />

diretamente ao real da linguagem,<br />

estilhaçando-a, quebrando as palavras e<br />

fazendo das letras uma invenção original<br />

de escrita, do lado do Alzheimer permanece<br />

também um encontro com um tempo<br />

real (especialmente no final), mas sem<br />

possibilidade de invenção, amarração ou<br />

costura. Essas letras, restos metonímicos,<br />

resquícios da cadeia que se esgarça, memória<br />

de um tempo primordial, talvez<br />

seja o último recurso a que alguns<br />

sujeitos com Alzheimer se agarram para<br />

tratar o real avassalador desse tempo que<br />

realmente desliza e não pára.<br />

Referências bibliográficas<br />

FREUD, Sigmund. Carta 52([1896]. ESB,<br />

Rio de Janeiro: Imago, 1977. v.<br />

LACAN, Jacques. O Seminário.Os quatro<br />

conceitos fundamentais da psicanálise.(1964).<br />

Rio de Janeiro, Zahar, 1988.<br />

-----------------------. O Seminário [1972-<br />

1973]. Livro 20: Mais ainda. Rio de Janeiro:<br />

Zahar, 1985<br />

---------------------. R.S.I. O Seminário (1974-<br />

1975). Inédito.<br />

---------------------. Topologie du temps. O<br />

Seminário.(1979). In: http://www.ecolelacanienne.net/bibliotheque.php<br />

---------------------. O Seminário. O Sinthoma<br />

(1975-76). Rio de Janeiro, Zahar, 2005, p. 90.<br />

Heteridade 7<br />

Internacional dos Fóruns-Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano 269

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