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#Manual de Direito do Consumidor (2017) - Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpsção Neves

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4.6. A RESPONSABILIDADE CIVIL PELO CIGARRO E O CÓDIGO DE DEFESA DO<br />

CONSUMIDOR80<br />

Seguin<strong>do</strong> no estu<strong>do</strong> da responsabilida<strong>de</strong> consumerista, cumpre analisar um <strong>do</strong>s principais problemas da responsabilida<strong>de</strong> civil<br />

contemporânea, qual seja o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nizar das empresas tabagistas pelo uso <strong>do</strong> cigarro. O tema está no cerne das discussões<br />

sociais e jurídicas <strong>do</strong>s tempos atuais, caben<strong>do</strong> relevar as fortes restrições legislativas ao uso <strong>do</strong> cigarro, especialmente em locais<br />

fecha<strong>do</strong>s, por uma questão <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública e interesse social.<br />

Após a entrada em vigor, no Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo, da Lei 13.541/2009, outras unida<strong>de</strong>s da fe<strong>de</strong>ração resolveram copiar a<br />

iniciativa <strong>de</strong>ssa proibição, como é o caso <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro (Lei 5.517/2009). O que se po<strong>de</strong> dizer, até o presente momento, é que a<br />

citada lei antifumo passou a ter ampla aplicação na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. Muito mais <strong>do</strong> que a fiscalização por parte <strong>do</strong>s órgãos<br />

públicos, os cidadãos e as entida<strong>de</strong>s privadas têm colabora<strong>do</strong> para sua efetivação. Isso porque a proibição ou o não uso <strong>do</strong> cigarro<br />

parecem estar impregna<strong>do</strong>s no senso comum, não só no Brasil, mas em to<strong>do</strong> o Planeta.<br />

A <strong>de</strong>monstrar tal evidência, a revista Veja publicou notícia, em sua edição <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2009, com o título “A morte<br />

lenta <strong>do</strong> cigarro”.81 A reportagem inicia-se com a seguinte constatação mundial, após tratar da realida<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> restrições ao<br />

cigarro: “A constatação <strong>do</strong>s tempos atuais é inequívoca: a moda contra o cigarro, que agora se espalha pelo Brasil, pegou. Pegou<br />

nas <strong>de</strong>mocracias <strong>do</strong> Oci<strong>de</strong>nte e, em certos casos, até mesmo em países mais pobres. Em alguns, as restrições são ousadas (Irlanda,<br />

2004: o cigarro é bani<strong>do</strong> até <strong>do</strong> símbolo nacional, os pubs). E outros são proibições ainda tímidas (República Checa, 2006:<br />

começou o veto ao cigarro nas escolas). Há países on<strong>de</strong> a lei funciona perfeitamente bem (Suécia, 2005: o cigarro sumiu <strong>do</strong>s locais<br />

públicos). Há outros em que é ignorada (Paquistão, 2003: fuma-se até <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s órgãos públicos). Apesar das diferenças <strong>de</strong> ritmo<br />

e <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> o banimento <strong>do</strong> cigarro parece inexorável no Oci<strong>de</strong>nte. O melhor exemplo talvez seja a França, a Paris <strong>do</strong>s cafés,<br />

<strong>do</strong>s maços <strong>de</strong> Gauloises coloca<strong>do</strong>s com o elmo ala<strong>do</strong> <strong>do</strong>s gauleses outrora invencíveis. Em 1991, entrou em vigor uma lei que<br />

bania o cigarro <strong>do</strong>s locais públicos e exigia que os restaurantes criassem áreas para não fumantes. Foi francamente ignorada. No<br />

ano passa<strong>do</strong>, uma nova lei, mas rígida que a anterior, pegou. O cigarro é a droga mais popular <strong>do</strong> século XX. Teve a mais<br />

espetacular trajetória <strong>de</strong> um produto no surgimento da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massas. No apogeu, era símbolo das mais instintivas ambições<br />

humanas: a riqueza, o po<strong>de</strong>r, a beleza. No ocaso, virou câncer, <strong>do</strong>r e morte”. 82<br />

Na verda<strong>de</strong>, parece-nos que a permissão para o uso totalmente livre e indiscrimina<strong>do</strong> <strong>do</strong> cigarro foi um erro histórico da<br />

humanida<strong>de</strong>, por óbvio influencia<strong>do</strong> por questões econômicas e pelo po<strong>de</strong>rio político latente das empresas <strong>de</strong> tabaco. Trata-se <strong>de</strong><br />

um erro que necessita ser corrigi<strong>do</strong>. A afirmação po<strong>de</strong> parecer forte, sobretu<strong>do</strong> para as pessoas que compõem as gerações<br />

anteriores. Entretanto, para as gerações sucessivas, o erro é perfeitamente perceptível, em especial se for consi<strong>de</strong>rada a cultura<br />

contemporânea da saú<strong>de</strong> e <strong>do</strong> bem-estar <strong>de</strong> vida (wellness life).<br />

Tal engano da humanida<strong>de</strong> foi constata<strong>do</strong> pelo sociólogo Sérgio Luís Boeira, em sua obra Atrás da cortina <strong>de</strong> fumaça.83 Ao<br />

analisar a questão histórica, o pesquisa<strong>do</strong>r aponta para o fato <strong>de</strong> que a “expansão da manufatura <strong>de</strong> tabaco acentua globalmente<br />

após a In<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong>s EUA. Primeiro, porque mesmo durante a guerra <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência os europeus incrementam a<br />

importação <strong>de</strong> fumo da América Latina e <strong>do</strong> Caribe e promovem o cultivo em outras regiões – como Áustria, Alemanha, Itália e<br />

In<strong>do</strong>nésia. Segun<strong>do</strong>, porque após a libertação estaduni<strong>de</strong>nse, a Inglaterra per<strong>de</strong> o monopólio da fabricação <strong>de</strong> pastilhas, rapé,<br />

cigarros e tabaco <strong>de</strong> pipa. Este fato provoca o surgimento <strong>de</strong> fábricas, ainda que rudimentares, baseadas na manufatura, e não em<br />

máquinas”. 84 Mais à frente, <strong>de</strong>monstra o sociólogo que o cigarro tornou-se substancialmente popular na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século<br />

XIX, estimula<strong>do</strong> o seu uso pela urbanização e pelo ritmo <strong>de</strong> vida da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> capitalismo, fortemente influencia<strong>do</strong> pelo<br />

mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida norte-americano (American way of life). A respeito <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong>, expõe o sociólogo: “Fumar cigarros torna-se mais<br />

prático <strong>do</strong> que fumar charuto ou cachimbo, o que induz muitos à experimentação e possivelmente ao hábito ou vício”. 85 No século<br />

XX, incrementou-se o <strong>de</strong>senvolvimento concreto e efetivo das indústrias <strong>de</strong> tabaco, sobretu<strong>do</strong> americanas e britânicas, ocorren<strong>do</strong><br />

também, nesse perío<strong>do</strong>, o surgimento <strong>do</strong>s primeiros estu<strong>do</strong>s relativos aos seus males. 86<br />

O pesquisa<strong>do</strong>r <strong>de</strong>staca que os movimentos antitabagistas e antifumo cresceram significativamente na segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

século, encontran<strong>do</strong> o seu apogeu na virada para o século XXI e no seu início, conforme já <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>. Na década <strong>de</strong> 1990, as<br />

entida<strong>de</strong>s públicas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobriram que as próprias empresas <strong>de</strong> cigarro haviam <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong> os graves males <strong>do</strong> produto,<br />

não revelan<strong>do</strong> tais da<strong>do</strong>s, por óbvio, para a socieda<strong>de</strong>:<br />

“Em mea<strong>do</strong>s da década <strong>de</strong> 1990, os órgãos públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrem que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1950 há, nos laboratórios das<br />

empresas fumageiras, pesquisa científica sigilosa e em profundida<strong>de</strong> sobre os efeitos <strong>do</strong> tabagismo. Obra capital neste senti<strong>do</strong> é The<br />

Cigarette Papers, que ten<strong>de</strong> a ser reconhecida como um marco na história da luta antitabagista – embora seja limitada teórica e<br />

meto<strong>do</strong>logicamente pelo paradigma disjuntor-redutor. O que Glanz e sua equipe chamam <strong>de</strong> irresponsabilida<strong>de</strong> e maneira enganosa<br />

é basicamente o fato <strong>de</strong> que a indústria mantém em segre<strong>do</strong> pesquisas científicas que contrariam frontalmente os seus próprios<br />

discursos públicos, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> comprovadas alterações e supressões <strong>de</strong> trechos consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s perigosos para a imagem pública das

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