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#Manual de Direito do Consumidor (2017) - Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpsção Neves

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Entretanto, mesmo nesse caso haverá uma nova e fatal crítica a respeito da conduta estatal: a clara e manifesta ofensa ao<br />

princípio <strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> processo substancial (substantive due process of law) 232 . É natural que a liberda<strong>de</strong> legislativa estatal – ainda<br />

mais pelo caminho in<strong>de</strong>vidamente toma<strong>do</strong> das medidas provisórias – encontra limites na proporcionalida<strong>de</strong> e razoabilida<strong>de</strong>, não se<br />

<strong>de</strong>ven<strong>do</strong> admitir a elaboração <strong>de</strong> regras legais que afrontem tais princípios. As mais variadas críticas <strong>do</strong>utrinárias elaboradas contra<br />

a regra legal ora analisada dão uma mostra clara <strong>de</strong> sua irrazoabilida<strong>de</strong>.<br />

Uma crítica mais severa, e não pela maior contundência ou maior acerto, mas porque inviabiliza na prática a aplicação da<br />

regra, é voltada para a impossibilida<strong>de</strong> material <strong>de</strong> se limitar territorialmente a coisa julgada material. Nesse senti<strong>do</strong>, as lições <strong>de</strong><br />

Luiz Guilherme Marinoni e Sergio Cruz Arenhart:<br />

“Quem examinar a<strong>de</strong>quadamente a regra, <strong>de</strong>ten<strong>do</strong> um mínimo <strong>de</strong> conhecimento a respeito da teoria da coisa julgada, concluirá com<br />

tranquilida<strong>de</strong> que a previsão é, em essência, absurda, ou por ser ilógica, ou por ser incompatível com a regência da coisa julgada.<br />

Como já se viu inúmeras vezes, a coisa julgada representa a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indiscutibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que se reveste o efeito <strong>de</strong>claratório da<br />

sentença <strong>de</strong> mérito. Não se trata- também já foi observa<strong>do</strong>, com a crítica <strong>de</strong> Liebman – <strong>de</strong> um efeito da sentença, mas sim <strong>de</strong><br />

qualida<strong>de</strong> que se agrega a certo efeito. Ora, pensar que uma qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> efeito só existe em <strong>de</strong>terminada porção <strong>do</strong><br />

território, seria o mesmo que dizer que uma fruta só é vermelha em certo lugar <strong>do</strong> país. Ora, da mesma forma que uma fruta não<br />

<strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> ter sua cor apenas por ingressar em outro território da fe<strong>de</strong>ração, só se po<strong>de</strong> pensar em uma sentença imutável frente à<br />

jurisdição nacional, e nunca em face <strong>de</strong> parcela <strong>de</strong>ssa jurisdição. Se um juiz brasileiro pu<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cidir novamente causa já <strong>de</strong>cidida em<br />

qualquer lugar <strong>do</strong> Brasil (da jurisdição brasileira), então é porque não existe, sobre a <strong>de</strong>cisão anterior, coisa julgada. O pensamento<br />

da regra chega a ser infantil, não se lhe po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> dar nenhuma função ou utilida<strong>de</strong>”233.<br />

E mesmo que se tenda a fugir <strong>de</strong>ssa crítica, interpretan<strong>do</strong>-se o dispositivo legal no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que a limitação não <strong>de</strong>ve atingir a<br />

coisa julgada material, conforme previsto, mas na realida<strong>de</strong> os efeitos da <strong>de</strong>cisão, os mesmos <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res <strong>de</strong>monstram a<br />

ina<strong>de</strong>quação da pretendida limitação:<br />

“O objetivo <strong>do</strong> dispositivo é limitar a abrangência <strong>do</strong>s efeitos da sentença (<strong>de</strong>ntre os quais, certamente, não se encaixa a coisa<br />

julgada). Mas nem para isso ele se presta. Os efeitos concretos da <strong>de</strong>cisão (que se operam no mun<strong>do</strong> real) operam-se em senti<strong>do</strong>s<br />

imprevisíveis e não po<strong>de</strong>m ser conti<strong>do</strong>s pela vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r. Assim como uma pessoa divorciada não po<strong>de</strong> ser divorciada<br />

apenas na cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> foi prolatada a sentença <strong>de</strong> seu divórcio (passan<strong>do</strong> a ser casada em outros municípios), uma sentença<br />

proferida em ação coletiva não po<strong>de</strong> ter seus efeitos limita<strong>do</strong>s a certa porção <strong>do</strong> território nacional. Os efeitos da sentença operam-se<br />

on<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem operar-se, e não on<strong>de</strong> o legisla<strong>do</strong>r queira que eles se verifiquem” 234 .<br />

A própria indivisibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> direito transindividual também é outro aspecto lembra<strong>do</strong> por gran<strong>de</strong> parte da <strong>do</strong>utrina para<br />

<strong>de</strong>monstrar a incompatibilida<strong>de</strong> lógica da limitação territorial com essas espécies <strong>de</strong> direitos235. Basta imaginar um direito difuso,<br />

<strong>de</strong> toda a coletivida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> limita<strong>do</strong> a apenas um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> território, o que aniquilaria a própria i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> indivisibilida<strong>de</strong> que é<br />

essencial aos direitos transindividuais. Como po<strong>de</strong> uma propaganda ser consi<strong>de</strong>rada enganosa em um Esta<strong>do</strong> da Fe<strong>de</strong>ração e não<br />

em outro? Um medicamento nocivo à saú<strong>de</strong> em um Esta<strong>do</strong> da Fe<strong>de</strong>ração e não em outro? Um contrato <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são ser nulo em um<br />

Esta<strong>do</strong> da Fe<strong>de</strong>ração e váli<strong>do</strong> em outros?<br />

Trago uma situação que vivi em minha atuação profissional para <strong>de</strong>monstrar que realmente, no que tange aos direitos difusos,<br />

somente quem tem nervos <strong>de</strong> aço consegue interpretar a norma ora criticada <strong>de</strong> forma a dar-lhe operativida<strong>de</strong>. O Ministério Público<br />

Estadual <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada capital ingressou com ação coletiva para obrigar um fornece<strong>do</strong>r a fornecer um telefone 0800 para os<br />

consumi<strong>do</strong>res que, uma vez ten<strong>do</strong> adquiri<strong>do</strong> o produto em telefonemas gratuitos, tinham que posteriormente reclamar por meio <strong>de</strong><br />

telefonemas pagos, inclusive por ligações interurbanas.<br />

Agora basta imaginar uma sentença <strong>de</strong> procedência diante <strong>de</strong> tal pedi<strong>do</strong>. Ela teria efeito somente para os consumi<strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong>micilia<strong>do</strong>s na comarca em que tramitou a <strong>de</strong>manda judicial, ou, ainda, na melhor das hipóteses, no Esta<strong>do</strong> em que a Comarca<br />

está contida? Insta<strong>do</strong> a criar um telefone 0800, ele seria disponível somente para quem provasse ser <strong>do</strong>micilia<strong>do</strong> naquele<br />

<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> território? Consumi<strong>do</strong>res <strong>de</strong> outro Esta<strong>do</strong> receberiam uma mensagem gravada afirman<strong>do</strong> que o serviço para eles não<br />

funcionaria porque no seu Esta<strong>do</strong> não teria o fornece<strong>do</strong>r si<strong>do</strong> con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> a oferecer o serviço 0800? Seria, no mínimo,<br />

consi<strong>de</strong>ravelmente complicada a aplicação da regra <strong>do</strong> art. 16 da LACP numa situação como essa.<br />

Igualmente interessante a tese <strong>de</strong> que a modificação legal tenha si<strong>do</strong> ineficaz por ter altera<strong>do</strong> dispositivo que já não mais se<br />

encontrava em vigor 236 . Segun<strong>do</strong> esse entendimento, a partir <strong>do</strong> momento em que o CDC passou a regulamentar, <strong>de</strong> forma<br />

exaustiva, o tema da coisa julgada na tutela coletiva por meio <strong>do</strong> art. 103 <strong>do</strong> diploma legal, o art. 16 da LACP teria si<strong>do</strong> tacitamente<br />

revoga<strong>do</strong>. Como o CDC é <strong>de</strong> 1990 e a mudança <strong>do</strong> art. 16 para a atual redação <strong>de</strong>u-se em 1994, a modificação teria si<strong>do</strong> ineficaz e,<br />

portanto, inaplicável.<br />

Também no plano da ineficácia da modificação trazida ao art. 16 da LACP pela Lei 9.494/1997, mas com outro fundamento,<br />

as lições <strong>de</strong> Hugo Nigro Mazzilli:

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