27.04.2017 Views

#Manual de Direito do Consumidor (2017) - Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpsção Neves

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

a regra em questão informa ao magistra<strong>do</strong> como <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir em caso <strong>de</strong> dúvida, somente na oportunida<strong>de</strong> em que proferirá<br />

<strong>de</strong>cisão proce<strong>de</strong>rá ele a avaliação <strong>de</strong> seu convencimento”214.<br />

Existem <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça nesse senti<strong>do</strong>, inclusive permitin<strong>do</strong> a inversão <strong>do</strong> ônus da prova em grau<br />

recursal, sob o argumento <strong>de</strong> que, por se tratar <strong>de</strong> regra <strong>de</strong> julgamento, é esse o momento a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>de</strong> aplicá-la, inclusive <strong>de</strong> forma<br />

invertida:<br />

“Agravo regimental. Agravo <strong>de</strong> instrumento. Inversão <strong>do</strong> ônus da prova em 2.º grau <strong>de</strong> jurisdição. Possibilida<strong>de</strong>. Regra <strong>de</strong><br />

julgamento. 1. Essa Corte firmou o entendimento <strong>de</strong> que é plenamente possível a inversão <strong>do</strong> ônus da prova em 2.º grau <strong>de</strong><br />

jurisdição, pois cuida-se <strong>de</strong> uma regra <strong>de</strong> julgamento, que não implica em cerceamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa para nenhuma das partes. 2.<br />

Agravo regimental não provi<strong>do</strong>” (STJ – AgRg no Ag 1.028.085/SP – Quarta Turma – Rel. Min. Vasco Della Giustina, Des.<br />

convoca<strong>do</strong> – j. 04.02.2010 – DJe 16.04.2010).<br />

O gran<strong>de</strong> problema <strong>de</strong>ssa corrente <strong>do</strong>utrinária é consi<strong>de</strong>rar o ônus da prova somente em seu aspecto objetivo, como regra <strong>de</strong><br />

julgamento, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> seu aspecto subjetivo, pelo qual o ônus da prova funciona como uma regra <strong>de</strong> conduta das partes<br />

durante a instrução probatória. Enten<strong>do</strong> que uma inversão <strong>do</strong> ônus da prova somente no momento <strong>do</strong> julgamento surpreen<strong>de</strong> a<br />

parte que até então não tinha tal ônus, em nítida afronta ao princípio <strong>do</strong> contraditório. Inverter o ônus da prova e não conce<strong>de</strong>r<br />

oportunida<strong>de</strong> para que a parte produza a prova representa claro e manifesto cerceamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa.<br />

Esse, entretanto, não é um entendimento pacifica<strong>do</strong> na <strong>do</strong>utrina. Para Nelson Nery Jr. e Maria Rosa Andra<strong>de</strong> Nery, a parte que<br />

teve o ônus da prova inverti<strong>do</strong> na sentença, “momento a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para o juiz assim proce<strong>de</strong>r, não po<strong>de</strong>rá alegar cerceamento <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fesa porque, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> consumo, já sabia quais eram as regras <strong>do</strong> jogo e que, haven<strong>do</strong> o non liquet quanto à<br />

prova, po<strong>de</strong>ria ter contra ela inverti<strong>do</strong> o ônus da prova. Em suma, o fornece<strong>do</strong>r (CDC 3.º) já sabe, <strong>de</strong> antemão, que tem <strong>de</strong> provar<br />

tu<strong>do</strong> o que estiver a seu alcance e for <strong>de</strong> seu interesse nas li<strong>de</strong>s <strong>de</strong> consumo. Não é pego <strong>de</strong> surpresa com a inversão na<br />

sentença”215.<br />

Data maxima venia, o entendimento é ingênuo e <strong>de</strong>sconecta<strong>do</strong> da realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> por completo a vida real na<br />

praxe forense. Afirmo que o advoga<strong>do</strong> tem como principal função a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s interesses <strong>de</strong> seu cliente, sen<strong>do</strong> que a justiça da<br />

<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>ve ser preocupação <strong>do</strong> juiz. Dentro da boa-fé e lealda<strong>de</strong> processual, a missão constitucionalmente atribuída ao advoga<strong>do</strong><br />

é <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses <strong>de</strong> seu patrocina<strong>do</strong> para que ganhe a <strong>de</strong>manda. Para o advoga<strong>do</strong> – e, por consequência, para as partes –, o<br />

justo é a vitória. Como já dizia com primazia Calamandrei, o advoga<strong>do</strong> que muito se preocupa com a justiça preten<strong>de</strong> tomar o<br />

lugar <strong>do</strong> juiz, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong>sassisti<strong>do</strong> seu cliente, o que é mortal para a dialeticida<strong>de</strong> necessária no processo.<br />

O que preten<strong>do</strong> dizer é que a parte que não tem o ônus da prova naturalmente terá uma atuação probatória menos intensa,<br />

porque sabe que, não haven<strong>do</strong> prova alguma, se sagrará vitoriosa na <strong>de</strong>manda. O resulta<strong>do</strong> da prova é imprevisível, e não é crível<br />

acreditar que um advoga<strong>do</strong>, mesmo saben<strong>do</strong> que seu cliente ganhará a <strong>de</strong>manda sem a prova, tenha interesse em produzi-la ainda<br />

assim. É no mínimo ingênuo pensar que as partes <strong>de</strong>vem fazer todas as provas possíveis in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> quem tenha o ônus<br />

probatório. Insisto: vencer a <strong>de</strong>manda é o objetivo <strong>de</strong> qualquer parte, e vencê-la pela aplicação <strong>do</strong> ônus da prova ou da certeza<br />

formada pela prova produzida não tem qualquer diferença. Por que exigir que o advoga<strong>do</strong> da parte que não tem o ônus da prova se<br />

arrisque a per<strong>de</strong>r uma <strong>de</strong>manda ganha, produzin<strong>do</strong> uma prova que para ele não trará qualquer melhora em termos <strong>de</strong> resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

processo?<br />

Não são poucos os <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m haver uma clara violação ao princípio <strong>do</strong> contraditório com a inversão <strong>do</strong><br />

ônus da prova, ocorren<strong>do</strong> somente no momento <strong>de</strong> prolação da <strong>de</strong>cisão216. Precisas são as palavras <strong>de</strong> Humberto Theo<strong>do</strong>ro Jr. a<br />

esse respeito:<br />

“É certo que a boa <strong>do</strong>utrina enten<strong>de</strong> que as regras sobre ônus da prova se impõem para solucionar questões examináveis no<br />

momento <strong>de</strong> sentenciar. Mas, pela garantia <strong>do</strong> contraditório e ampla <strong>de</strong>fesa, as partes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da fase instrutória, têm <strong>de</strong><br />

conhecer quais são as regras que irão prevalecer na apuração da verda<strong>de</strong> real sobre a qual se assentará, no fim <strong>do</strong> processo, a<br />

solução da li<strong>de</strong>. (…) A não ser assim, ter-se-ia uma surpresa intolerável e irremediável, em franca oposição aos princípios da<br />

segurança jurídica e lealda<strong>de</strong> imprescindíveis à cooperação <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os sujeitos <strong>do</strong> processo na busca e construção da justa solução<br />

<strong>do</strong> litígio. Somente asseguran<strong>do</strong> a cada litigante o conhecimento prévio <strong>de</strong> qual será o objeto da prova e a quem incumbirá o ônus <strong>de</strong><br />

produzi-la é que se preservará a garantia constitucional da ampla <strong>de</strong>fesa” 217 .<br />

Partin<strong>do</strong>-se da premissa que a inversão no momento <strong>do</strong> julgamento, sem dar chances à parte que até então não tinha tal ônus<br />

<strong>de</strong> produzir a prova, viola o princípio <strong>do</strong> contraditório, geran<strong>do</strong> cerceamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, a <strong>do</strong>utrina divi<strong>de</strong>-se em duas correntes a<br />

respeito <strong>do</strong> momento a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> à inversão.<br />

Parcela significativa da <strong>do</strong>utrina enten<strong>de</strong> que a inversão <strong>de</strong>ve ocorrer no saneamento <strong>do</strong> processo, ou seja, antes <strong>do</strong> início da<br />

instrução probatória. Nesse senti<strong>do</strong>, Alexandre Freitas Câmara afirma que “cabe ao juiz, pois, no momento em que organizar a

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!