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#Manual de Direito do Consumidor (2017) - Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpsção Neves

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constituiria um microssistema jurídico autoaplicável e autossuficiente, totalmente isola<strong>do</strong> das <strong>de</strong>mais normas.17 Assim, naquela<br />

outrora vigente realida<strong>de</strong>, haven<strong>do</strong> uma relação <strong>de</strong> consumo, seria aplica<strong>do</strong> o Código <strong>de</strong> Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r e não o Código<br />

Civil. Por outra via, presente uma relação civil, incidiria o Código Civil e não o CDC. Assim era ensinada a disciplina <strong>de</strong> <strong>Direito</strong><br />

<strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r na década <strong>de</strong> noventa e na primeira década <strong>do</strong> século XXI.<br />

Porém, essa concepção foi superada com o surgimento <strong>do</strong> Código Civil <strong>de</strong> 2002 e da teoria <strong>do</strong> diálogo das fontes. Tal tese foi<br />

<strong>de</strong>senvolvida na Alemanha por Erik Jayme, professor da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>lberg, e trazida ao Brasil pela notável Claudia Lima<br />

Marques, da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul. A essência da teoria é <strong>de</strong> que as normas jurídicas não se excluem –<br />

supostamente porque pertencentes a ramos jurídicos distintos –, mas se complementam. No Brasil, a principal incidência da teoria<br />

se dá justamente na interação entre o CDC e o CC/2002, em matérias como a responsabilida<strong>de</strong> civil e o <strong>Direito</strong> Contratual. Do<br />

ponto <strong>de</strong> vista legal, a tese está baseada no art. 7º <strong>do</strong> CDC, que a<strong>do</strong>ta um mo<strong>de</strong>lo aberto <strong>de</strong> interação legislativa. Repise-se que, <strong>de</strong><br />

acor<strong>do</strong> com tal coman<strong>do</strong>, os direitos previstos no CDC não excluem outros <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> trata<strong>do</strong>s ou convenções internacionais <strong>de</strong><br />

que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, <strong>de</strong> regulamentos expedi<strong>do</strong>s pelas autorida<strong>de</strong>s administrativas<br />

competentes, bem como <strong>do</strong>s que <strong>de</strong>rivem <strong>do</strong>s princípios gerais <strong>do</strong> direito, analogia, costumes e equida<strong>de</strong>. Nesse contexto, é<br />

possível que a norma mais favorável ao consumi<strong>do</strong>r esteja fora da própria Lei Consumerista, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o intérprete fazer a opção<br />

por esse preceito específico.<br />

Uma das principais justificativas que po<strong>de</strong>m surgir para a incidência refere-se à sua funcionalida<strong>de</strong>. É cediço que vivemos um<br />

momento <strong>de</strong> explosão <strong>de</strong> leis, um “Big Bang legislativo”, como simbolizou Ricar<strong>do</strong> Lorenzetti. O mun<strong>do</strong> pós-mo<strong>de</strong>rno e<br />

globaliza<strong>do</strong>, complexo e abundante por natureza, convive com uma quantida<strong>de</strong> enorme <strong>de</strong> normas jurídicas, a <strong>de</strong>ixar o aplica<strong>do</strong>r <strong>do</strong><br />

<strong>Direito</strong> até <strong>de</strong>snortea<strong>do</strong>. Repise-se a convivência com a era da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, conforme expõe o mesmo Lorenzetti.18 O diálogo das<br />

fontes serve como leme nessa tempesta<strong>de</strong> <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>.<br />

Desse mo<strong>do</strong>, diante <strong>do</strong> pluralismo pós-mo<strong>de</strong>rno, com inúmeras fontes legais, surge a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação entre as leis<br />

que fazem parte <strong>do</strong> mesmo or<strong>de</strong>namento jurídico. 19 A expressão é feliz justamente pela a<strong>de</strong>quação à realida<strong>de</strong> social da pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Ao justificar o diálogo das fontes, esclarece Claudia Lima Marques que “A bela expressão <strong>de</strong> Erik Jayme, hoje<br />

consagrada no Brasil, alerta-nos <strong>de</strong> que os tempos pós-mo<strong>de</strong>rnos não mais permitem esse tipo <strong>de</strong> clareza ou monossolução. A<br />

solução sistemática pós-mo<strong>de</strong>rna, em um momento posterior à <strong>de</strong>scodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma<br />

eficiência não só hierárquica, mas funcional <strong>do</strong> sistema plural e complexo <strong>de</strong> nosso direito contemporâneo, <strong>de</strong>ve ser mais fluida,<br />

mais flexível, tratar diferentemente os diferentes, a permitir maior mobilida<strong>de</strong> e fineza <strong>de</strong> distinção. Nestes tempos, a superação <strong>de</strong><br />

paradigmas é substituída pela convivência <strong>do</strong>s paradigmas”. 20<br />

Como ensina a própria jurista, há um diálogo diante <strong>de</strong> influências recíprocas, com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação concomitante<br />

das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, <strong>de</strong> forma complementar ou subsidiária. Há, assim, uma solução que é flexível<br />

e aberta, <strong>de</strong> interpenetração ou <strong>de</strong> busca, no sistema, da norma que seja mais favorável ao vulnerável.21 Ainda, como afirma a<br />

<strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>ra em outra obra, “O uso da expressão <strong>do</strong> mestre ‘diálogo das fontes’ é uma tentativa <strong>de</strong> expressar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

aplicação coerente das leis <strong>de</strong> direito priva<strong>do</strong>, coexistentes no sistema. É a <strong>de</strong>nominada ‘coerência <strong>de</strong>rivada ou restaurada’<br />

(cohérence dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à <strong>de</strong>scodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma<br />

eficiência não só hierárquica, mas funcional <strong>do</strong> sistema plural e complexo <strong>de</strong> nosso direito contemporâneo, a evitar a ‘antinomia’, a<br />

‘incompatibilida<strong>de</strong>’ ou a ‘não coerência’”. 22<br />

A possibilitar tal interação no que concerne às relações obrigacionais, sabe-se que houve uma aproximação principiológica<br />

entre o CDC e o CC/2002 no que tange aos contratos. Essa aproximação principiológica se <strong>de</strong>u pelos princípios sociais<br />

contratuais, que já estavam presentes na Lei Consumerista e foram transpostos para a codificação privada, quais sejam os<br />

princípios da autonomia privada, da boa-fé objetiva e da função social <strong>do</strong>s contratos. Nesse senti<strong>do</strong> e no campo <strong>do</strong>utrinário, na III<br />

Jornada <strong>de</strong> <strong>Direito</strong> Civil, evento promovi<strong>do</strong> pelo Conselho da Justiça Fe<strong>de</strong>ral e pelo Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça no ano <strong>de</strong> 2002,<br />

aprovou-se o Enuncia<strong>do</strong> n. 167, in verbis: “Com o advento <strong>do</strong> Código Civil <strong>de</strong> 2002, houve forte aproximação principiológica<br />

entre esse Código e o Código <strong>de</strong> Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são<br />

incorpora<strong>do</strong>res <strong>de</strong> uma nova teoria geral <strong>do</strong>s contratos”.<br />

Por isso, os <strong>de</strong>fensores <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res, como o presente autor, não <strong>de</strong>vem temer o Código Civil <strong>de</strong> 2002, como temiam o<br />

Código Civil <strong>de</strong> 1916, norma essencialmente individualista e egoística. Como o Código Civil <strong>de</strong> 2002 po<strong>de</strong> servir também para a<br />

tutela efetiva <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res, como se verá, supera-se, então, no que tange aos contratos, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o Código Consumerista<br />

seria um microssistema jurídico, totalmente isola<strong>do</strong> <strong>do</strong> Código Civil <strong>de</strong> 2002.<br />

Simbologicamente, po<strong>de</strong>-se dizer que, pela teoria <strong>do</strong> diálogo das fontes, supera-se a interpretação insular <strong>do</strong> <strong>Direito</strong>, segun<strong>do</strong><br />

a qual cada ramo <strong>do</strong> conhecimento jurídico representaria uma ilha (símbolo cria<strong>do</strong> por José Fernan<strong>do</strong> Simão). O <strong>Direito</strong> passa a ser<br />

visualiza<strong>do</strong>, assim, como um sistema solar (interpretação sistemática e planetária), em que os planetas são os Códigos, os satélites<br />

são os estatutos próprios (caso <strong>do</strong> CDC) e o Sol é a Constituição Fe<strong>de</strong>ral, irradian<strong>do</strong> seus raios solares – seus princípios – por to<strong>do</strong>

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