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#Manual de Direito do Consumidor (2017) - Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpsção Neves

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evi<strong>de</strong>nte a este autor, em especial pela perda <strong>de</strong> pessoas próximas pelo uso <strong>do</strong> cigarro e pela farta bibliografia médica que con<strong>de</strong>na<br />

essa prática. Há gerações que não conseguiram vencer a luta pela vida contra o cigarro. Outras até hoje lutam contra os seus males,<br />

com algumas vitórias, dada a evolução da medicina. E para aqueles que pensam o contrário, seria interessante interrogarem-se se<br />

seria aceitável o incentivo <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> tabaco aos próprios filhos.<br />

Conforme aponta a <strong>do</strong>utrina mais atenta, po<strong>de</strong>-se falar em <strong>de</strong>feitos ocultos, pelo problema quanto ao acesso à informação <strong>do</strong>s<br />

males <strong>do</strong> cigarro, principalmente se forem leva<strong>do</strong>s em conta aqueles que se iniciaram no fumo antes <strong>do</strong> início da veiculação <strong>de</strong><br />

informações sobre os males <strong>do</strong> produto. 100 Para que o argumento da ausência <strong>de</strong> nexo <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> fique <strong>de</strong>vidamente afasta<strong>do</strong>,<br />

cite-se, ainda, a correta aplicação da teoria da presunção <strong>de</strong> nexo <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong>, utilizada em alguns julga<strong>do</strong>s, que tem relação<br />

direta com a pressuposição <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> pela colocação das pessoas em risco pelo produto. 101 Voltan<strong>do</strong> mais uma vez ao<br />

argumento <strong>do</strong> <strong>de</strong>feito, <strong>de</strong> fato, se o uso <strong>do</strong> cigarro não causar males à pessoa pelo seu uso continua<strong>do</strong>, o que até acontece, não há<br />

que se falar em <strong>de</strong>feito. Por outra via, presente o prejuízo, o produto perigoso é eleva<strong>do</strong> à condição <strong>de</strong> produto <strong>de</strong>feituoso,<br />

surgin<strong>do</strong>, então, a responsabilida<strong>de</strong> civil.<br />

Sobre a questão <strong>do</strong> exercício regular <strong>de</strong> direito e da licitu<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvida, cumpre <strong>de</strong>stacar que o <strong>Direito</strong> Civil<br />

Brasileiro admite a responsabilida<strong>de</strong> civil por atos lícitos.102 De início, cite-se a hipótese <strong>de</strong> legítima <strong>de</strong>fesa putativa, em que o<br />

agente pensa que está tutelan<strong>do</strong> imediatamente um direito seu, ou <strong>de</strong> terceiro, o que não é verda<strong>de</strong>. 103 Além da legítima <strong>de</strong>fesa<br />

putativa, admite-se a responsabilida<strong>de</strong> civil <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> agressivo. O art. 188, I, <strong>do</strong> Código Civil enuncia<br />

que não constitui ato ilícito a <strong>de</strong>terioração ou <strong>de</strong>struição da coisa alheia, ou a lesão à pessoa, a fim <strong>de</strong> remover perigo iminente<br />

(esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>). Todavia, nos termos <strong>do</strong> art. 929 da atual codificação privada, se a pessoa lesada ou o <strong>do</strong>no da coisa, em<br />

casos tais, não for culpa<strong>do</strong> <strong>do</strong> perigo, assistir-lhe-á direito à in<strong>de</strong>nização <strong>do</strong> prejuízo que sofreram. O exemplo clássico é o <strong>de</strong> um<br />

pe<strong>de</strong>stre que vê uma criança gritan<strong>do</strong> em meio às chamas que atingem uma casa. O pe<strong>de</strong>stre arromba a porta da casa, apaga o<br />

incêndio e salva a criança. Nos termos <strong>do</strong>s dispositivos visualiza<strong>do</strong>s, se quem causou o incêndio não foi o <strong>do</strong>no da casa, o<br />

pe<strong>de</strong>stre-herói terá que in<strong>de</strong>nizá-lo, ressalva<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> regresso contra o real culpa<strong>do</strong> (art. 930 <strong>do</strong> Código Civil). Ora, seria<br />

irrazoável imaginar um sistema que or<strong>de</strong>na que uma pessoa em ato heroico tenha o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> reparar, enquanto as empresas <strong>de</strong><br />

tabaco, em condutas nada heroicas, tão somente lucrativas, sejam excluídas <strong>de</strong> qualquer responsabilida<strong>de</strong> pelos produtos perigosos<br />

postos em circulação.<br />

Além <strong>de</strong>sses argumentos, insta verificar que, muitas vezes, principalmente para os fumantes das décadas mais remotas, a<br />

questão <strong>do</strong> cigarro po<strong>de</strong> ser resolvida pela figura <strong>do</strong> abuso <strong>de</strong> direito. Isso porque as empresas não informavam <strong>do</strong>s males causa<strong>do</strong>s<br />

pelo produto, enganan<strong>do</strong> os consumi<strong>do</strong>res. Assim, estaria configurada a publicida<strong>de</strong> enganosa, nos termos <strong>do</strong> art. 37, § 1º, da Lei<br />

8.078/1990, o que gera o seu <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nizar. Conforme dispõe o art. 187 <strong>do</strong> Código Civil <strong>de</strong> 2002, po<strong>de</strong>-se falar ainda em<br />

quebra da boa-fé, pela falsida<strong>de</strong> da informação, o que é muito bem exposto por Claudia Lima Marques em excelente e corajoso<br />

parecer sobre a questão.104 Em suma, comercializar cigarros po<strong>de</strong> até ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> lícito, diante <strong>de</strong> um erro histórico cometi<strong>do</strong><br />

pela humanida<strong>de</strong>. Porém, comercializar o produto sem as corretas informações <strong>de</strong> seus males – já conheci<strong>do</strong>s pelas próprias<br />

empresas –, geran<strong>do</strong> danos, configura um ilícito por equiparação (art. 927, caput, <strong>do</strong> Código Civil), conforme bem aponta Lúcio<br />

Delfino. 105 Não nos fazem mudar <strong>de</strong> opinião os argumentos contrários, apesar <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s esforços da <strong>do</strong>utrina <strong>de</strong> escol. 106<br />

No que concerne à questão da publicida<strong>de</strong>, o parecer <strong>de</strong> Judith Martins-Costa quase chega a convencer, em especial pelos<br />

argumentos realeanos. Aduz a jurista:<br />

“Traduzin<strong>do</strong> esses da<strong>do</strong>s para as categorias teóricas <strong>do</strong> tridimensionalismo <strong>de</strong> Miguel Reale, observaremos que o fato da<br />

consciência social acerca <strong>do</strong>s malefícios <strong>do</strong> cigarro tem permaneci<strong>do</strong>, através <strong>do</strong>s tempos, relativamente o mesmo; porém esse fato<br />

(a consciência social) recebe diferentes valorações sociais e jurídicas no curso <strong>do</strong>s tempos, resultan<strong>do</strong>, então, em diferentes<br />

recepções normativas por parte <strong>do</strong> <strong>Direito</strong>. Quan<strong>do</strong> a consciência social <strong>do</strong>s males <strong>do</strong> fumo convivia com a sua ‘glamourização’<br />

sociocultural, havia uma ampla tolerância jurídica; porém passa-se, progressivamente, à ‘<strong>de</strong>sglamourização’ sociocultural <strong>do</strong> fumo,<br />

em virtu<strong>de</strong> da ascensão ao status <strong>de</strong> valor social <strong>do</strong> culto à saú<strong>de</strong>. Então, verifica-se uma relativa intolerância jurídica, expressa nas<br />

leis e medidas administrativas restritivas ao fumo e na regulação da propaganda <strong>de</strong> cigarros”. 107<br />

A conclusão a que chega mais à frente, quanto à oferta e à boa-fé, é a <strong>de</strong> que não é possível interpretar as situações jurídicas<br />

<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> com a realida<strong>de</strong> social <strong>do</strong> presente e vice-versa. Assim, alega que houve equívoco <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Tribunal Gaúcho ao<br />

con<strong>de</strong>nar a empresa Souza Cruz, eis que agiu “trazen<strong>do</strong> a pré-compreensão e interpretação hoje <strong>de</strong>vidas ao princípio da boa-fé<br />

objetiva para selecionar, filtrar, apreciar e, finalmente, julgar, fatos ocorri<strong>do</strong>s nas longínquas décadas <strong>de</strong> 40 e 50 <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>,<br />

<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s contextuais e ignoran<strong>do</strong> a circunstancialida<strong>de</strong> em que o conhecimento das concretas situações <strong>de</strong> vida<br />

relativas ao tratamento jurídico <strong>do</strong>s riscos <strong>do</strong> tabagismo efetivamente se processa”.108 Anote-se que os fortes argumentos da<br />

jurista foram utiliza<strong>do</strong>s no julgamento <strong>do</strong> Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça publica<strong>do</strong> no seu Informativo n. 432.<br />

As belas lições da <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>ra, na verda<strong>de</strong>, servem em parte para a premissa jurídica que aqui se propõe. A boa-fé objetiva, a

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