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#Manual de Direito do Consumidor (2017) - Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpsção Neves

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“É fato notório, cientificamente <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>, inclusive reconheci<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma oficial pelo próprio Governo Fe<strong>de</strong>ral, que o fumo traz<br />

inúmeros malefícios à saú<strong>de</strong>, tanto à <strong>do</strong> fumante como à <strong>do</strong> não fumante, sen<strong>do</strong>, por tais razões, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m médico-científica,<br />

inegável que a nicotina vicia, por isso que gera <strong>de</strong>pendência química e psíquica, e causa câncer <strong>de</strong> pulmão, enfisema pulmonar,<br />

infarto <strong>do</strong> coração entre outras <strong>do</strong>enças igualmente graves e fatais. A indústria <strong>de</strong> tabaco, em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong><br />

1950, já conhecia os males que o consumo <strong>do</strong> fumo causa aos seres humanos, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, nessas circunstâncias, a conduta das<br />

empresas em omitir a informação é evi<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong>losa, como bem <strong>de</strong>monstram os arquivos secretos <strong>de</strong>ssas empresas, revela<strong>do</strong>s<br />

nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s em ação judicial movida por esta<strong>do</strong>s norte-americanos contra gran<strong>de</strong>s empresas transnacionais <strong>de</strong> tabaco,<br />

arquivos esses que se contrapõem e <strong>de</strong>smentem o posicionamento público das empresas, revelan<strong>do</strong>-o falso e <strong>do</strong>loso, pois divulga<strong>do</strong><br />

apenas para enganar o público, e <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> a real orientação das empresas, a<strong>do</strong>tada internamente, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que sempre<br />

tiveram pleno conhecimento e consciência <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os males causa<strong>do</strong>s pelo fumo. E tal posicionamento público, falso e <strong>do</strong>loso,<br />

sempre foi historicamente sustenta<strong>do</strong> por maciça propaganda enganosa, que reiteradamente associou o fumo a imagens <strong>de</strong> beleza,<br />

sucesso, liberda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>r, riqueza e inteligência, omitin<strong>do</strong>, reiteradamente, ciência aos usuários <strong>do</strong>s malefícios <strong>do</strong> uso, sem tomar<br />

qualquer atitu<strong>de</strong> para minimizar tais malefícios e, pelo contrário, trabalhan<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> da <strong>de</strong>sinformação, alician<strong>do</strong>, em particular<br />

os jovens, em estratégia <strong>do</strong>losa para com o público, consumi<strong>do</strong>r ou não.”<br />

Tal acórdão concluiu pelo nexo <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> entre a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se colocar o produto no merca<strong>do</strong> e os danos sofri<strong>do</strong>s pela<br />

vítima e por seus familiares, “porquanto fato notório que a nicotina causa <strong>de</strong>pendência química e psicológica e que o hábito <strong>de</strong><br />

fumar provoca diversos danos à saú<strong>de</strong>, entre os quais o câncer e o enfisema pulmonar, males <strong>de</strong> que foi acometi<strong>do</strong> o faleci<strong>do</strong>, não<br />

comprovan<strong>do</strong>, a ré, qualquer fato impeditivo, modificativo ou extintivo <strong>do</strong> direito <strong>do</strong>s autores”. A <strong>de</strong>cisão atribui culpa à empresa<br />

pela omissão e negligência na informação, nos termos <strong>do</strong> art. 159 <strong>do</strong> CC/1916 (responsabilida<strong>de</strong> subjetiva). Ato contínuo, <strong>de</strong>duz<br />

ser a sua conduta viola<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s <strong>de</strong>veres consubstancia<strong>do</strong>s nas máximas latinas <strong>de</strong> neminem lae<strong>de</strong>r e suum cuique tribuere – “não<br />

lesar a ninguém” e “dar a cada um o que é seu” –, bem como no princípio da boa-fé objetiva.<br />

O <strong>de</strong>cisum consi<strong>de</strong>ra não relevante a tese <strong>de</strong> licitu<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comercialização <strong>do</strong> cigarro perante as leis <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,<br />

sen<strong>do</strong> <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> impertinente para o mérito a <strong>de</strong>pendência ou voluntarieda<strong>de</strong> no uso ou consumo, com o intuito <strong>de</strong> afastar a<br />

responsabilida<strong>de</strong>. Em suma, a questão <strong>do</strong> livre-arbítrio foi <strong>de</strong>scartada pela <strong>de</strong>cisão.<br />

Por fim, no que tange aos argumentos jurídicos <strong>de</strong> procedência da <strong>de</strong>manda, foi aplicada a responsabilida<strong>de</strong> objetiva <strong>do</strong><br />

Código <strong>de</strong> Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong> o cigarro consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um produto <strong>de</strong>feituoso, não só em relação aos fumantes<br />

(consumi<strong>do</strong>res-padrão) como no tocante aos não fumantes ou fumantes passivos (consumi<strong>do</strong>res equipara<strong>do</strong>s), “uma vez que não<br />

oferece a segurança que <strong>de</strong>le se po<strong>de</strong> esperar, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se a apresentação, o uso e os riscos que razoavelmente <strong>de</strong>le se esperam<br />

(art. 12, § 1º, <strong>do</strong> CDC)”. A culpa exclusiva <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r foi tida como não caracterizada, uma vez que “o ato voluntário <strong>do</strong> uso<br />

ou consumo não induz culpa e, na verda<strong>de</strong>, no caso, sequer há opção livre <strong>de</strong> fumar ou não fumar, em <strong>de</strong>corrência da <strong>de</strong>pendência<br />

química e psíquica e diante da propaganda massiva e aliciante, que sempre cultuou os malefícios <strong>do</strong> cigarro, o que afasta em<br />

<strong>de</strong>finitivo qualquer alegação <strong>de</strong> culpa concorrente ou exclusiva da vítima”.<br />

Os valores in<strong>de</strong>nizatórios fixa<strong>do</strong>s foram bem eleva<strong>do</strong>s. A título <strong>de</strong> danos materiais, foram repara<strong>do</strong>s a venda <strong>de</strong> imóvel e <strong>de</strong><br />

bovinos (para tratar a vítima), as <strong>de</strong>spesas médicas e hospitalares comprovadas, a hospedagem <strong>de</strong> acompanhantes durante a<br />

internação, os gastos com o funeral e o luto da família (danos emergentes). Ainda foram ressarci<strong>do</strong>s os prejuízos <strong>de</strong>correntes <strong>do</strong><br />

fechamento <strong>do</strong> minimerca<strong>do</strong> da vítima, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a época da constatação da <strong>do</strong>ença até a data em que o faleci<strong>do</strong> completaria setenta<br />

anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, conforme a expectativa <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s gaúchos (lucros cessantes). Como reparação pelos danos morais, foi fixada a<br />

quantia <strong>de</strong> seiscentos salários mínimos para a esposa, <strong>de</strong> quinhentos salários mínimos para cada um <strong>do</strong>s quatro filhos e <strong>de</strong> trezentos<br />

salários mínimos para cada um <strong>do</strong>s genros, totalizan<strong>do</strong> os danos imateriais três mil e duzentos salários mínimos.<br />

Além <strong>de</strong>ssa até então inédita e excelente <strong>de</strong>cisão, igualmente concluin<strong>do</strong> pela procedência <strong>de</strong> ação proposta por uso <strong>de</strong><br />

cigarros, há acórdão <strong>do</strong> Tribunal <strong>de</strong> Justiça <strong>de</strong> São Paulo, que <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> enfrentou o problema sob a perspectiva da<br />

responsabilida<strong>de</strong> objetiva <strong>do</strong> Código <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r. A ação foi proposta pela própria fumante – que pleiteou danos materiais e<br />

morais pela perda <strong>de</strong> membros inferiores como consequência <strong>do</strong> tabagismo – e julgada proce<strong>de</strong>nte em primeira instância,<br />

con<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>-se a empresa Souza Cruz S/A a in<strong>de</strong>nizá-la em R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais). A ementa <strong>do</strong> julga<strong>do</strong> foi o<br />

seguinte:<br />

“Responsabilida<strong>de</strong> civil. In<strong>de</strong>nização por danos morais e materiais. Tabagismo. Amputação <strong>do</strong>s membros inferiores. Vítima<br />

acometida <strong>de</strong> tromboangeíte aguda obliterante. Nexo causal configura<strong>do</strong>. incidência <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.<br />

Responsabilida<strong>de</strong> objetiva <strong>de</strong>corrente da teoria <strong>do</strong> risco assumida com a fabricação e comercialização <strong>do</strong> produto. Omissão <strong>do</strong>s<br />

resulta<strong>do</strong>s das pesquisas sobre o efeito viciante da nicotina. Dever <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nizar. Recurso improvi<strong>do</strong>” (TJSP – Apelação com<br />

Revisão 379.261.4/5 – Acórdão 3320623, São Paulo – Oitava Câmara <strong>de</strong> <strong>Direito</strong> Priva<strong>do</strong> – Rel. Des. Joaquim Garcia – j.<br />

08.10.2008 – DJESP 13.11.2008).<br />

Em sua relatoria, o Desembarga<strong>do</strong>r José Garcia concluiu pela incidência da responsabilida<strong>de</strong> sem culpa da Lei 8.078/1990,

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