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#Manual de Direito do Consumidor (2017) - Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpsção Neves

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planeja<strong>do</strong>. A in<strong>de</strong>nização foi em face da empresa Schering <strong>do</strong> Brasil, que fornecia a pílula anticoncepcional Microvlar, presente na<br />

<strong>de</strong>cisão uma apurada análise da extensão <strong>do</strong> dano em relação às consumi<strong>do</strong>ras. A longa ementa da <strong>de</strong>cisão merece ser aqui<br />

transcrita, para as <strong>de</strong>vidas reflexões:<br />

“Civil e processo civil. Recurso especial. Ação civil pública proposta pelo PROCON e pelo Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo. Anticoncepcional<br />

Microvlar. Acontecimentos que se notabilizaram como o ‘caso das pílulas <strong>de</strong> farinha’. Cartelas <strong>de</strong> comprimi<strong>do</strong>s sem princípio ativo,<br />

utilizadas para teste <strong>de</strong> maquinário, que acabaram atingin<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>ras e não impediram a gravi<strong>de</strong>z in<strong>de</strong>sejada. Pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

con<strong>de</strong>nação genérica, permitin<strong>do</strong> futura liquidação individual por parte das consumi<strong>do</strong>ras lesadas. Discussão vinculada à<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> respeito à segurança <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, ao direito <strong>de</strong> informação e à compensação pelos danos morais sofri<strong>do</strong>s. Nos<br />

termos <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes, associações possuem legitimida<strong>de</strong> ativa para propositura <strong>de</strong> ação relativa a direitos individuais homogêneos.<br />

Como o mesmo fato po<strong>de</strong> ensejar ofensa tanto a direitos difusos, quanto a coletivos e individuais, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> apenas da ótica com<br />

que se examina a questão, não há qualquer estranheza em se ter uma ação civil pública concomitante com ações individuais, quan<strong>do</strong><br />

perfeitamente <strong>de</strong>limitadas as matérias cognitivas em cada hipótese. A ação civil pública <strong>de</strong>manda ativida<strong>de</strong> probatória congruente<br />

com a discussão que ela veicula; na presente hipótese, analisou-se a colocação ou não das consumi<strong>do</strong>ras em risco e responsabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> <strong>de</strong>srespeito ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> informação. Quanto às circunstâncias que envolvem a hipótese, o TJSP enten<strong>de</strong>u que não<br />

houve <strong>de</strong>scarte eficaz <strong>do</strong> produto-teste, <strong>de</strong> forma que a empresa permitiu, <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong>, que tais pílulas atingissem as<br />

consumi<strong>do</strong>ras. Quanto a esse ‘mo<strong>do</strong>’, verificou-se que a empresa não mantinha o mínimo controle sobre pelo menos quatro aspectos<br />

essenciais <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> produtiva, quais sejam: a) sobre os funcionários, pois a estes era permiti<strong>do</strong> entrar e sair da fábrica com o<br />

que bem enten<strong>de</strong>ssem; b) sobre o setor <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga <strong>de</strong> produtos usa<strong>do</strong>s e/ou inservíveis, pois há <strong>de</strong>poimentos no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que era<br />

possível encontrar medicamentos no ‘lixão’ da empresa; c) sobre o transporte <strong>do</strong>s resíduos; e d) sobre a incineração <strong>do</strong>s resíduos. E<br />

isso acontecia no mesmo instante em que a empresa se <strong>de</strong>dicava a manufaturar produto com potencialida<strong>de</strong> extremamente lesiva aos<br />

consumi<strong>do</strong>res. Em nada socorre a empresa, assim, a alegação <strong>de</strong> que, até hoje, não foi possível verificar exatamente <strong>de</strong> que forma as<br />

pílulas-teste chegaram às mãos das consumi<strong>do</strong>ras. O panorama fático a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo acórdão recorri<strong>do</strong> mostra que tal <strong>de</strong>monstração<br />

talvez seja mesmo impossível, porque eram tantos e tão graves os erros e <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>s na linha <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong>scarte <strong>de</strong><br />

medicamentos, que não seria hipótese infundada afirmar-se que os placebos atingiram as consumi<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> diversas formas ao<br />

mesmo tempo. A responsabilida<strong>de</strong> da fornece<strong>do</strong>ra não está condicionada à introdução consciente e voluntária <strong>do</strong> produto lesivo no<br />

merca<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. Tal i<strong>de</strong>ia fomentaria uma terrível discrepância entre o nível <strong>do</strong>s riscos assumi<strong>do</strong>s pela empresa em sua<br />

ativida<strong>de</strong> comercial e o padrão <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s que a fornece<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>ve ser obrigada a manter. Na hipótese, o objeto da li<strong>de</strong> é <strong>de</strong>limitar a<br />

responsabilida<strong>de</strong> da empresa quanto à falta <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s eficazes para garantir que, uma vez ten<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> manufatura perigosa,<br />

tal produto fosse afasta<strong>do</strong> das consumi<strong>do</strong>ras. A alegada culpa exclusiva <strong>do</strong>s farmacêuticos na comercialização <strong>do</strong>s placebos parte <strong>de</strong><br />

premissa fática que é inadmissível e que, <strong>de</strong> qualquer mo<strong>do</strong>, não teria o alcance <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> excluir totalmente a<br />

responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r. A empresa fornece<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>scumpre o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> informação quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> divulgar,<br />

imediatamente, notícia sobre riscos envolven<strong>do</strong> seu produto, em face <strong>de</strong> juízo <strong>de</strong> valor a respeito da conveniência, para sua própria<br />

imagem, da divulgação ou não <strong>do</strong> problema. Ocorreu, no caso, uma curiosa inversão da relação entre interesses das consumi<strong>do</strong>ras e<br />

interesses da fornece<strong>do</strong>ra: esta alega ser lícito causar danos por falta, ou seja, permitir que as consumi<strong>do</strong>ras sejam lesionadas na<br />

hipótese <strong>de</strong> existir uma pretensa dúvida sobre um risco real que posteriormente se concretiza, e não ser lícito agir por excesso, ou<br />

seja, tomar medidas <strong>de</strong> precaução ao primeiro sinal <strong>de</strong> risco. O <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> compensar danos morais, na hipótese, não fica afasta<strong>do</strong><br />

com a alegação <strong>de</strong> que a gravi<strong>de</strong>z resultante da ineficácia <strong>do</strong> anticoncepcional trouxe, necessariamente, sentimentos positivos pelo<br />

surgimento <strong>de</strong> uma nova vida, porque o objeto <strong>do</strong>s autos não é discutir o <strong>do</strong>m da maternida<strong>de</strong>. Ao contrário, o produto em questão é<br />

um anticoncepcional, cuja única utilida<strong>de</strong> é a <strong>de</strong> evitar uma gravi<strong>de</strong>z. A mulher que toma tal medicamento tem a intenção <strong>de</strong> utilizálo<br />

como meio a possibilitar sua escolha quanto ao momento <strong>de</strong> ter filhos, e a falha <strong>do</strong> remédio, ao frustrar a opção da mulher, dá<br />

ensejo à obrigação <strong>de</strong> compensação pelos danos morais, em liquidação posterior. Recurso especial não conheci<strong>do</strong>” (STJ – REsp<br />

866.636/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 29.11.2007 – DJ 06.12.2007, p. 312).<br />

Três são as conclusões <strong>do</strong> julga<strong>do</strong> que merecem ser <strong>de</strong>stacadas. A primeira é a <strong>de</strong> que o PROCON, como entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

<strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res, tem legitimida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> direitos individuais homogêneos com clara repercussão social. A segunda, que<br />

mais nos interessa, é no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que os danos morais po<strong>de</strong>m ser coletivos e não só individuais, o que é claro pela simples leitura<br />

<strong>do</strong> art. 6º, inc. VI, da Lei 8.078/1990. A terceira conclusão é a <strong>de</strong> que as mulheres que engravidaram sofreram lesões à<br />

personalida<strong>de</strong> diante <strong>de</strong> uma situação não esperada ou não planejada. Assim, obviamente, não é o nascimento <strong>do</strong> filho que causa o<br />

dano moral, mas sim a frustração <strong>de</strong> uma opção pessoal. Perfeitas são todas as conclusões <strong>de</strong>sse exemplar acórdão, que merece o<br />

<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>Direito</strong>.<br />

A respeito <strong>do</strong> dano difuso, po<strong>de</strong> ele ser visualiza<strong>do</strong> como um dano social. Para Antonio Junqueira <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>, os danos<br />

sociais “são lesões à socieda<strong>de</strong>, no seu nível <strong>de</strong> vida, tanto por rebaixamento <strong>de</strong> seu patrimônio moral – principalmente a respeito<br />

da segurança – quanto por diminuição na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida”.42 Na esteira <strong>do</strong>s ensinamentos <strong>do</strong> jurista, constata-se que tais<br />

prejuízos po<strong>de</strong>m gerar repercussões materiais ou morais, o que os diferencia <strong>do</strong>s danos morais coletivos, pois os últimos são<br />

apenas extrapatrimoniais. Os danos sociais <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> condutas socialmente reprováveis ou comportamentos exemplares<br />

negativos, como quer o próprio Junqueira <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>.43<br />

Pois bem, os danos sociais são difusos, pois envolvem situações em que as vítimas são in<strong>de</strong>terminadas ou in<strong>de</strong>termináveis,

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