Maria Luisa Pinto.pdf - Repositório Aberto da Universidade do Porto
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Filipe<br />
127<br />
No relato de Filipe sobre a sua institucionalização sobressaem os<br />
sentimentos de aban<strong>do</strong>no e solidão, a vontade de desaparecer <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para se<br />
libertar <strong>do</strong> insuportável, quem sabe se, num último alento de esperança, descobrir<br />
alguém que genuinamente com ele se implique e comprometa. Os actos de violência<br />
contra si próprio, e mesmo uma tentativa de suicídio indicam um intenso sofrimento<br />
depressivo, em que os afectos pre<strong>do</strong>minantes são negativos, de desvalorização,<br />
per<strong>da</strong>, aban<strong>do</strong>no, isolamento ou solidão, com a sensação de não haver esperança ou<br />
aju<strong>da</strong> possível, características <strong>do</strong> designa<strong>do</strong> pensamento terminal, onde entre viver ou<br />
morrer não existe grande diferença.<br />
A crise no desenvolvimento emocional, tem sempre as suas origens mais<br />
profun<strong>da</strong>s, em tempos anteriores, e por isso é necessário estar atento, porque o que<br />
está subjacente a um comportamento deste tipo é sempre um apelo à vi<strong>da</strong>; e, mesmo<br />
sen<strong>do</strong> nesse contexto, como refere Pedro Strecht, o seu valor é justamente esse de<br />
chamar a atenção: «Ninguém vê que estou mal e preciso de aju<strong>da</strong>?» 150 . Quem pratica<br />
o acto transmite uma mensagem e essa mensagem, mais <strong>do</strong> que a agressivi<strong>da</strong>de<br />
contra si próprio dirige-se para to<strong>do</strong>s os que, à sua volta, não estiveram aptos a<br />
compreender ou foram indiferentes ao seu sofrimento. Alguém que vive num intenso<br />
sofrimento que precisa de ser descodifica<strong>do</strong> para que se torne possível superar as<br />
experiências <strong>do</strong>lorosas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e abrir perspectivas para o futuro.<br />
―Até aos meus 13 anos, vivemos juntos com o meu pai. Depois fui para um<br />
colégio. Foi pior <strong>da</strong>í para a frente… Sentava-me muitas vezes a um canto,<br />
só e não queria saber de na<strong>da</strong> e começava a pensar coisas … coisas más,<br />
como, por exemplo, o suicídio…<br />
Tentei algumas vezes… tentei… man<strong>da</strong>r-me de um muro cá para baixo, de<br />
um muro alto… outras vezes an<strong>da</strong>va de telha<strong>do</strong> em telha<strong>do</strong>, a saltar, a<br />
brincar, sozinho, mas não era a pensar nessas coisas, só que eles, no<br />
colégio, os monitores, achavam que era, que só pensava nisso, não<br />
confiavam, tinham me<strong>do</strong>, tinham me<strong>do</strong> que fizesse coisas. O monitor, lá no<br />
colégio, não confiava em mim. Tinha me<strong>do</strong> porque eu era um revolta<strong>do</strong>,<br />
sempre revolta<strong>do</strong> e não me interessava por na<strong>da</strong>. Fez-se parecer o meu<br />
amigo mas não era. (…) Eu confiei tu<strong>do</strong> nele, as coisas mais íntimas, mas<br />
ele não mereceu …mas começou a ficar tu<strong>do</strong> mal… comecei a fumar no<br />
colégio… a consumir haxixe… sim, cheguei a fazer o 6º ano… no ensino à<br />
noite… repeti algumas vezes, porque faltava à escola.<br />
Com os meus irmãos não havia problemas… mas eu sentia raiva…<br />
Ninguém acreditava em mim. Tinha muitos amigos no colégio. Gostavam de<br />
mim. Mas o pior, pior, foi quan<strong>do</strong> o meu pai morreu. Ninguém me dizia na<strong>da</strong>,<br />
ninguém me contava na<strong>da</strong>. To<strong>do</strong>s sabiam mas não me diziam. Os outros,<br />
os adultos, tinham me<strong>do</strong>. Me<strong>do</strong> que fizesse disparates. Neste tempo <strong>do</strong><br />
colégio só me lembro que tinha me<strong>do</strong>, raiva, revolta, muita revolta e<br />
150 Pedro Strecht, Vontade de Ser, op. cit., p.167.