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claros flutuavam à minha volta. Percebi que era o único comprador<br />
presente naquele lugar um tanto soturno, pelo qual me deslocava como<br />
um peixe num aquário de águas glaucas. Detectei pensamentos bizarros<br />
brotando nas mentes das lânguidas senhoras que me escoltavam de<br />
seção em seção, de saliência rochosa às algas marinhas, e os cintos e<br />
pulseiras que escolhi pareciam derramar-se de mãos de sereia na água<br />
transparente. Comprei uma valise elegante, pedi que guardassem nela<br />
as minhas compras, e encaminhei-me para o hotel mais próximo, muito<br />
satisfeito com o meu dia.<br />
De alguma forma, por associação com essa tarde poética e tranquila<br />
de compras meticulosas, lembrei-me do hotel ou pousada, com o nome<br />
sedutor de Caçadores Encantados, que Charlotte por acaso mencionara<br />
pouco antes da minha libertação. Com a ajuda de um guia localizei-o na<br />
cidade distante de Briceland, a quatro horas de carro da colônia de férias<br />
de Lo. Podia ter telefonado, mas com medo de minha voz escapar ao<br />
controle e transformar-se num coaxar esquivo de inglês macarrônico,<br />
decidi mandar um telegrama reservando um quarto duplo para a noite<br />
seguinte. Que Príncipe Encantado mais cômico, desajeitado e vacilante<br />
era eu! Como alguns de meus leitores hão de rir quando eu lhes contar a<br />
dificuldade que tive para escolher cada palavra do telegrama! O que<br />
deveria dizer: Humbert e filha? Humberg e filha menor? Homberg e<br />
menina imatura? Homburg e criança? O erro ridículo — o “g” no final —<br />
no texto que acabei enviando pode ter sido um eco telepático das<br />
minhas hesitações.<br />
E então, no veludo de uma noite de verão, minhas ruminações sobre<br />
o filtro que trazia comigo! Oh Hamburg mesquinho! Comportava-se<br />
como um verdadeiro Caçador Encantado enquanto refletia sobre sua<br />
caixa de munição mágica? Para derrotar o monstro da insônia, não<br />
deveria ele próprio experimentar uma daquelas cápsulas cor de<br />
ametista? No total, eram quarenta — quarenta noites com uma frágil<br />
menina adormecida a meu flanco latejante; será que eu podia privar-me<br />
de uma dessas noites para poder dormir? Claro que não: preciosa demais<br />
era cada uma dessas ameixas diminutas, cada planetário microscópico<br />
dotado de sua ativa poeira de estrelas. Ah, deixai-me ser uma vez só<br />
sentimental! Estou tão cansado de ser cínico.<br />
26<br />
Esta dor de cabeça diária no ar opaco desta prisão tumular me perturba,<br />
mas preciso perseverar. Já escrevi mais de cem páginas e não cheguei a<br />
lugar algum. Meu calendário está ficando confuso. Isso deve ter ocorrido<br />
em torno de 15 de agosto de 1947. Acho que não consigo continuar.<br />
Coração, cabeça — tudo. Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita, Lolita,<br />
Lolita, Lolita. Repita até encher a página, impressor.