14.05.2015 Views

o_19l9sf1klot912ii1tl61iufs6da.pdf

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

me sentara em cima de um paciente calvo de cabeça castanha<br />

confundido com o dr. Blue mas que depois de algum tempo conseguiu<br />

desvencilhar-se, observando com um sotaque grotesco: “E agora eu lhe<br />

pergunto, quem é o neurótico aqui?” — e em seguida uma enfermeira<br />

séria e delgada entregou-me sete lindos, lindos livros e o cobertor xadrez<br />

esplendidamente dobrado, pedindo-me um recibo em troca; e no súbito<br />

silêncio tomei consciência de um policial na entrada, para quem o outro<br />

motorista me indicava com o dedo, e assinei humilimamente o recibo<br />

muito simbólico, abrindo mão por seu intermédio da minha Lolita em<br />

favor daquele bando de macacos. O que mais me restava fazer? Um<br />

pensamento simples e cabal sobressaía, e era o seguinte: “No momento,<br />

a liberdade é tudo.” Um gesto em falso — e podia ver-me obrigado a<br />

explicar toda uma vida de crimes. De maneira que simulei um despertar<br />

atordoado. Ao outro motorista paguei o que ele achava justo. Ao dr. Blue,<br />

que a essa altura me segurava pela mão, falei aos prantos da bebida que<br />

me servia para proteger com algum excesso um coração traiçoeiro mas<br />

não necessariamente avariado. Ao hospital como um todo pedi perdão<br />

com uma reverência que quase me derruba, acrescentando todavia que<br />

não me dava especialmente bem com o restante do clã dos Humbert. A<br />

mim mesmo, sussurrei que continuava de posse da minha arma, e<br />

continuava em liberdade — livre para seguir a fugitiva, livre para destruir<br />

meu irmão.<br />

23<br />

Mais de mil e quinhentos quilômetros de uma estrada macia como seda<br />

separavam Kasbeam, onde, até onde eu sabia, o demônio vermelho se<br />

manifestara pela última vez, e a fatídica Elphinstone que atingíramos<br />

mais ou menos uma semana antes dos festejos do 4 de Julho, Dia da<br />

Independência. A viagem tomara quase todo o mês de junho, pois<br />

raramente percorríamos mais de duzentos e cinquenta quilômetros por<br />

dia, passando o resto do tempo, num dos casos até cinco dias, em vários<br />

pontos de parada, todos também sem dúvida pré-arranjados entre eles.<br />

Era ao longo desse trecho, portanto, que o rastro do demônio devia ser<br />

procurado; e a isto me dediquei, ao cabo de vários dias indescritíveis,<br />

disparando de um lado para outro pelas estradas que se irradiavam<br />

implacáveis a partir de Elphinstone.<br />

Tente imaginar, leitor, com toda a minha timidez, minha falta de<br />

gosto por qualquer ostentação, minha noção inerente do comme il faut,<br />

tente imaginar-me encobrindo o frenesi da minha dor com um trêmulo<br />

sorriso insinuante enquanto inventava algum pretexto banal para folhear<br />

o livro de registro do hotel: “Ah”, dizia eu, “tenho quase certeza de que<br />

fiquei aqui — deixe-me ver os registros de meados de junho — não, estou<br />

vendo que me enganei — que nome estranho para uma cidade,<br />

Kawtagain. Muito obrigado”. Ou: “Um cliente meu se hospedou aqui —

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!