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Pensei. Mais de um minuto se passou.<br />

“Pronto. Vamos lá.”<br />

“Eu estava nessa linha?”<br />

“Estava, sem dúvida.”<br />

“Espero mesmo que sim”, disse Charlotte entrando na água, que logo<br />

chegou à pele arrepiada de suas coxas grossas; e então, juntando as<br />

mãos estendidas, fechando bem a boca, muito feia com sua touca de<br />

borracha preta, Charlotte arremessou-se para a frente levantando muita<br />

água.<br />

Lentamente pusemo-nos a nadar na cintilação do lago.<br />

Na margem oposta, a pelo menos mil passos de distância (se alguém<br />

pudesse atravessar as águas a pé), distinguiam-se as figuras diminutas<br />

de dois homens que trabalhavam como castores em seu trecho de praia.<br />

Eu sabia exatamente quem eram: um ex-policial de origem polonesa e o<br />

bombeiro aposentado a quem pertencia a maior parte da madeira<br />

daquele lado do lago. E sabia também que estavam empenhados em<br />

construir, só pela escassa diversão da coisa, um embarcadouro. As<br />

pancadas que chegavam a nós pareciam muito desproporcionais aos<br />

movimentos aparentes dos braços e ferramentas desses dois anões; na<br />

verdade, tinha-se a impressão de que o produtor desses efeitos<br />

acrossônicos estava em desacordo com o titereiro, especialmente porque<br />

a pesada explosão de cada minúscula pancada nos chegava bem depois<br />

de sua manifestação visual.<br />

A estreita faixa de areia da “nossa” praia — da qual a essa altura já<br />

nos tínhamos afastado bastante em busca de águas mais profundas —<br />

ficava sempre vazia nas manhãs dos dias úteis. Não havia mais ninguém<br />

nas cercanias além daquelas duas figuras diminutas muito entretidas do<br />

outro lado, e de um avião particular vermelho-escuro que roncou<br />

sobrevoando nossas cabeças e em seguida desapareceu no azul. A cena<br />

era perfeita para um crime brusco e borbulhante, e aqui estava o motivo<br />

sutil: o homem da lei e o homem das águas estavam próximos o<br />

bastante para testemunharem um acidente, mas distantes demais para<br />

observarem um crime. Estavam próximos o bastante para ouvirem um<br />

banhista transtornado espadanando na água e pedindo aos berros ajuda<br />

para a mulher que se afogava; mas distantes demais para distinguirem<br />

(se por acaso levantassem os olhos antes da hora) que o nadador nada<br />

transtornado continuava a segurar sua mulher debaixo d’água. Eu ainda<br />

não chegara a esse ponto; quero apenas dar uma ideia da facilidade do<br />

ato, do quanto o cenário era propício. Ali tínhamos então Charlotte a<br />

nadar com sua peculiar falta de graça (era uma sereia muito medíocre),<br />

mas não sem um certo prazer solene (pois não tinha a seu lado o seu<br />

tritão?); e enquanto eu contemplava, com a rematada lucidez de uma<br />

rememoração futura (sabem como é — quando tentamos ver as coisas

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