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almejava.<br />
“Venha aqui dar um beijo no seu velho”, dizia eu, “e deixe dessas<br />
manhas sem sentido. Antigamente, quando eu ainda era o homem dos<br />
seus sonhos [o leitor há de perceber o trabalho que me dava para falar a<br />
língua de Lo], você desmaiava com os discos do maior ídolo das suas<br />
coetâneas [Lo: ‘Das minhas o quê? Não sabe falar inglês claro?’]. O ídolo<br />
das suas amiguinhas tinha uma voz parecida, você achava, com a do<br />
querido Humbert. Mas agora eu sou só o seu velho, um pai imaginário<br />
protegendo a filha dos seus sonhos.<br />
“Minha chère Dolorès! Quero protegê-la, querida, de todos os<br />
horrores que acometem as mocinhas nas rampas de carvão ou nos becos<br />
sem saída e, ai de mim, comme vous le savez trop bien, ma gentille, nos<br />
bosques de frutinhas azuladas no mais azulado dos verões. Contra tudo e<br />
todos seguirei sendo seu guardião e, se você se comportar bem, espero<br />
que um tribunal logo possa legalizar minha tutela. Todavia, vamos<br />
esquecer, Dolores Haze, a suposta terminologia legal de “coabitação<br />
lúbrica e lasciva”. Não sou um criminoso sexual psicopata que se entrega<br />
a práticas indecentes com uma criança: Charlie Holmes a violava; eu<br />
velava por ela — e a distinção no caso é mais do que clara. Sou seu<br />
papai, Lo. Olhe, tenho aqui um livro muito fundamentado que fala de<br />
meninas. Veja aqui, querida, o que ele diz. Nas palavras do autor: a<br />
menina normal — normal, veja bem —, a menina normal geralmente se<br />
mostra extremamente ansiosa para agradar seu pai. Sente nele o<br />
precursor do homem esquivo que há de desejar (“esquivo” é muito bom,<br />
por Polônio!). A mãe sensata (e sua mãe haveria de mostrar-se sensata,<br />
caso ainda estivesse entre nós) deve sempre estimular o<br />
companheirismo entre pai e filha, percebendo — desculpem o estilo<br />
meloso — que a menina forma seus ideais de romance em matéria de<br />
homens a partir de sua associação com o pai. Mas qual associação esse<br />
estimulante livro aborda — e recomenda? Volto às palavras do autor:<br />
entre os sicilianos, as relações sexuais entre pai e filha são aceitas como<br />
uma prática normal, e a menina que participa dessa relação não é<br />
reprovada pela sociedade a que pertence. Sou grande admirador dos<br />
sicilianos, ótimos atletas, belos músicos, pessoas boas e eretas, Lo, e<br />
grandes amantes. Mas deixemos de digressões. Faz poucos dias,<br />
pudemos ler nos jornais um palavrório sem sentido sobre um criminoso<br />
sexual de meia-idade que se declarou culpado de ter violado o Mann Act,<br />
a lei contra o tráfico de escravas brancas, por ter atravessado a divisa<br />
entre dois estados transportando uma garota de nove anos com fins<br />
imorais, seja lá isso o que for. Querida Dolores! Você não tem nove anos,<br />
mas quase treze, e eu não lhe aconselharia a considerar-se minha<br />
escrava, e deploro que o Mann Act seja uma lei que se preste a um<br />
trocadilho medonho com atos masculinos, a vingança dos deuses da