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Algumas das reações foram muito engraçadas: um leitor sugeriu que<br />

sua editora poderia cogitar da publicação caso eu transformasse minha<br />

Lolita num menino de doze anos e o fizesse ser seduzido por Humbert,<br />

um agricultor, num celeiro, num cenário árido e despojado, tudo relatado<br />

em frases curtas, fortes e “realistas” (“Ele age como um louco. Todos<br />

agimos como loucos, acho eu. Acho que Deus age como um louco.” Etc.).<br />

Embora todo mundo deva saber que detesto símbolos e alegorias (o que<br />

se deve em parte às minhas antigas diferenças com o xamanismo<br />

freudiano e, em parte, a meu horror às generalizações concebidas por<br />

mitólogos e sociólogos da literatura), um leitor de resto inteligente que<br />

folheou a primeira parte do meu livro descreveu Lolita como “a Antiga<br />

Europa degradando a jovem América”, enquanto outro folheador viu nele<br />

“a Jovem América degradando a velha Europa”. A editora X, cujos<br />

conselheiros se aborreceram a tal ponto com Humbert que nunca<br />

chegaram a passar da página 188, teve a ingenuidade de me escrever<br />

dizendo que a Parte Dois era longa demais. A editora Y, por outro lado,<br />

deplorava que não existissem pessoas bondosas no livro. O editor Z<br />

afirmou que, caso publicasse Lolita, ele e eu iríamos para a cadeia.<br />

Não se deve esperar que nenhum escritor num país livre se preocupe<br />

com a demarcação exata entre o sensório e o sensual; isso é um<br />

despropósito; só posso admirar, mas não tenho como emular, a precisão<br />

do julgamento das pessoas que orientam as poses de belas jovens<br />

mamíferas fotografadas em revistas onde a linha geral do decote é baixa<br />

o suficiente para provocar o riso de um antigo mestre da pintura e alta<br />

apenas o bastante para não causar amuos no diretor geral dos Correios.<br />

Suponho que existam leitores que achem excitantes as palavras rasteiras<br />

desses romances irremediavelmente banais e enormes, redigidos com<br />

evidente falta de talento por mediocridades muito tensas e classificados<br />

de “vigorosos” e “crus” pela malta dos resenhistas. Existem almas gentis<br />

que sentenciam que Lolita não faz sentido porque o livro não lhes ensina<br />

nada. Não sou leitor nem escritor de ficção didática e, apesar das<br />

afirmações de John Ray, Lolita não traz a reboque moral alguma. Para<br />

mim, uma obra de ficção só existe na medida em que me proporciona o<br />

que chamarei sem rodeios de prazer estético, isto é, a sensação de que<br />

de algum modo, em algum lugar, está conectada a outros estados da<br />

existência em que a arte (a curiosidade, a gentileza, o êxtase) é a norma.<br />

Não existem muitos livros assim. Todo o resto não passa de lixo tópico ou<br />

o que alguns chamam de Literatura de Ideias, que muitas vezes não<br />

passa de lixo tópico encerrado em imensos blocos de gesso<br />

cuidadosamente transmitidos de geração em geração até alguém<br />

aparecer com um martelo e desferir uma boa marretada em Balzac,<br />

Gorki ou Mann.<br />

Outra acusação que alguns leitores fizeram é que Lolita é

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