14.05.2015 Views

o_19l9sf1klot912ii1tl61iufs6da.pdf

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

constatem por si mesmos como foi cauteloso, como foi casto, todo esse<br />

momento de rara doçura quando visto com o que meu advogado<br />

chamou, numa conversa particular que tivemos, de “compaixão<br />

imparcial”. Comecemos, então. Tenho uma tarefa difícil pela frente.<br />

Personagem central: Humbert o Murmurante. Hora: manhã de<br />

domingo em junho. Local: sala ensolarada. Objetos de cena: velho sofá,<br />

listrado de cores fortes, revistas, vitrola, badulaques mexicanos (o<br />

falecido sr. Harold E. Haze — que Deus abençoe o bom homem —<br />

engendrara minha amada em plena hora da siesta num quarto pintado<br />

de azul, durante a viagem de lua de mel a Vera Cruz, e os souvenirs do<br />

passeio, entre eles Dolores, espalhavam-se pela casa toda). Naquele dia,<br />

ela usava um bonito vestido estampado que eu só a vira usar antes uma<br />

vez, amplo na saia, justo no corpete, cor-de-rosa e quadriculado de rosa<br />

mais escuro, e, para completar o esquema de cores, ela pintara os lábios<br />

e segurava nas mãos em concha uma bela e banal maçã, de um<br />

vermelho Éden. Não estava calçada, porém, para a igreja. E sua bolsinha<br />

branca de domingo repousava perto da vitrola.<br />

Meu coração batia como um bumbo quando ela se instalou, a saia<br />

fresca inflando e depois assentada, no sofá a meu lado, brincando com<br />

sua fruta reluzente. Arremessou-a no ar polvilhado de sol, estendeu a<br />

mão para ela — e o pomo produziu um som seco, côncavo e lustroso.<br />

Humbert Humbert o interceptara.<br />

“Devolva aqui”, pediu ela, exibindo o rubor marmóreo das palmas.<br />

Apresentei-lhe a Delícia. Ela agarrou-a, deu-lhe uma mordida e meu<br />

coração parecia de neve sob uma pele fina e carmesim, e com a<br />

agilidade simiesca tão típica daquela ninfeta americana ela arrancou da<br />

minha guarda distraída a revista que eu abrira (pena que nenhuma<br />

película tenha registrado o curioso padrão, o encadeamento<br />

monogrâmico de nossos movimentos simultâneos ou superpostos).<br />

Rapidamente, pouco atrapalhada pela maçã desfigurada que segurava,<br />

Lo folheou furiosamente as páginas à procura de algo que desejava<br />

mostrar a Humbert. E finalmente encontrou. Simulei interesse e<br />

aproximei tanto minha cabeça que sentia seus cabelos em minha<br />

têmpora e seu braço roçou meu rosto quando ela limpou os lábios com o<br />

pulso. Devido à névoa refulgente em meio à qual eu vislumbrava a<br />

figura, fui lento em reagir, e seus joelhos nus esfregavam-se e chocavamse<br />

de impaciência. E vagamente fui percebendo: um pintor surrealista<br />

relaxando, deitado de costas, numa praia, e ao lado dele, igualmente<br />

estendida, uma réplica em gesso da Vênus de Milo, semienterrada na<br />

areia. Imagem da Semana, dizia a legenda. E afastei de lado aquela<br />

coisa obscena. No momento seguinte, num pretenso esforço para<br />

recuperá-la, ela lançou-se sobre mim. E eu a segurei pelo pulso fino e<br />

nodoso. A revista voou para o chão como uma ave alvoroçada. Ela soltou-

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!