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tampa sendo desenroscada, um gorgolejar discreto e, depois, a nota final<br />

de um plácido enroscamento. Eu estava quase indo embora quando sua<br />

voz se dirigiu a mim:<br />

“De qual inferno ela saiu?”<br />

“O que disse?”<br />

“Eu disse: o inverno aqui deve ser frio.”<br />

“Parece mesmo.”<br />

“Quem é a menina?”<br />

“Minha filha.”<br />

“Não é verdade — você mente.”<br />

“O que disse?”<br />

“Eu disse: o mês passado foi mais quente. Onde está a mãe dela?”<br />

“Morta.”<br />

“Entendo. Sinto muito. Aliás, por que vocês dois não almoçam<br />

comigo amanhã? Essa gente horrível já terá ido embora.”<br />

“E nós também. Boa noite.”<br />

“Desculpe. Estou bastante embriagado. Boa noite. A sua filha precisa<br />

de muito sono. O sono é uma rosa, como dizem os persas. Quer fumar?”<br />

“Agora não.”<br />

Ele riscou um fósforo, mas como estava bêbado, ou porque o vento<br />

estava errático, a chama iluminou não o seu rosto mas o de outra pessoa,<br />

um homem muito velho, um desses hóspedes permanentes dos velhos<br />

hotéis — numa cadeira de balanço branca. Ninguém disse nada e a<br />

escuridão retornou a seu estado anterior. Então ouvi o veterano tossir e<br />

livrar-se de algum muco sepulcral.<br />

Fui embora. Pelo menos meia hora se passara no total. Eu devia ter<br />

pedido um gole daquela garrafa. A tensão começava a revelar-se. Se<br />

uma corda de violino pode sentir dor, eu era essa corda. Mas teria sido<br />

inconveniente demonstrar qualquer pressa. Enquanto eu avançava em<br />

meio a uma constelação de pessoas fixas num canto do saguão, um<br />

clarão cegante espocou — e o radiante dr. Braddock, duas matronas<br />

ornadas de orquídeas, a menininha de branco e presumivelmente os<br />

dentes à mostra de Humbert Humbert, esgueirando-se de lado entre a<br />

garotinha vestida de noiva e o clérigo encantado, foram imortalizados —<br />

na medida em que a textura e a impressão dos jornais de cidade<br />

pequena podem ser qualificadas de imortalidade. Um grupo chilreante<br />

se formara junto à porta do elevador. Optei novamente pelas escadas. O<br />

342 ficava perto da escada de incêndio. Ainda dava para — mas a chave<br />

já entrara na fechadura, e então entrei no quarto.<br />

29<br />

A porta do banheiro iluminado estava entreaberta; além disso, pelas<br />

venezianas entrava um fulgor esqueletal das luzes externas; esses raios<br />

entrecruzados penetravam na escuridão do quarto e revelaram a

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