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cirurgia importante) —, e essa ternura se aprofundava em vergonha e<br />
desespero, e eu embalava e ninava minha leve e solitária Lolita em meus<br />
braços de mármore, e murmurava em seus cálidos cabelos, acariciava a<br />
criança aleatoriamente e pedia mudo sua bênção, e no auge dessa<br />
ternura humana, desprendida e agônica (em que minha alma<br />
praticamente pairava à volta de seu corpo nu, pronta a arrepender-se),<br />
inesperadamente, ironicamente, horrivelmente, o desejo tornava a<br />
ganhar corpo — e “ah, não”, dizia Lolita com um suspiro para os céus, e<br />
no momento seguinte a ternura e o azul-celeste — tudo aquilo se<br />
despedaçava.<br />
As ideias de meados do século XX a respeito da relação entre pais e<br />
filhos foram consideravelmente maculadas pela parolagem acadêmica e<br />
a simbologia padronizada do aparato psicanalítico, mas espero estar-me<br />
dirigindo a leitores sem ideias preconcebidas. Certa vez, quando o pai de<br />
Avis buzinara na rua em frente para assinalar que papai tinha vindo levar<br />
sua pequena para casa, senti-me obrigado a convidá-lo a entrar na sala,<br />
e ele sentou-se por um minuto; enquanto conversávamos, Avis, uma<br />
criança pesada e afetuosa desprovida de atrativos, aproximou-se dele e<br />
acabou por empoleirar-se rechonchuda em seu joelho. Agora, não me<br />
lembro se mencionei que Lolita sempre tinha um sorriso perfeitamente<br />
encantador para desconhecidos, semicerrando os olhos com meiguice e<br />
exibindo um ar penugento, uma disposição radiosa de todos os seus<br />
traços que evidentemente nada significava mas era tão linda, tão<br />
irresistível que ficava difícil reduzir toda aquela ternura apenas à magia<br />
de um único gene que acendesse automaticamente seu rosto como um<br />
remanescente atavístico de algum antigo ritual de boas-vindas — o ritual<br />
da prostituição por hospitalidade, poderia dizer o leitor mais tosco. Pois<br />
lá estava ela de pé enquanto o sr. Byrd girava o chapéu e falava, e —<br />
sim, vejam como sou idiota, deixei de fora a característica mais<br />
importante do famoso sorriso de Lolita, a saber: enquanto a<br />
luminosidade afetuosa e nectárea exibia suas covinhas, nunca se dirigia<br />
ao convidado presente, mas pendia na floração de seu próprio vácuo<br />
remoto, por assim dizer, ou vagava aleatoriamente, com uma indistinção<br />
de míope, de objeto em objeto —, e era isso que acontecia agora:<br />
enquanto a gorda Avis se aproximava de lado do seu papai, Lolita pôs-se<br />
a irradiar mansamente o seu sorriso na direção de uma faca que tocava<br />
com a ponta dos dedos na beira da mesa, na qual ela estava apoiada a<br />
muitos quilômetros de mim. De repente, quando Avis se agarrou ao<br />
pescoço e à orelha do pai ao mesmo tempo que, com um braço casual, o<br />
homem envolveu sua vasta e informe descendente, vi o sorriso de Lolita<br />
perder toda a luz e reduzir-se a uma pequena sombra congelada de si<br />
mesmo, enquanto a faca escorregava da mesa e acertava-lhe com o cabo<br />
de prata uma pancada no calcanhar que a fez prender a respiração,