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incadeiras inconsequentes com a ordem das coisas: Albinus em Riso<br />

no escuro, com seu plano de caricaturar os Grandes Mestres; Kinbote em<br />

Fogo pálido, com sua indevida leitura épica e solipsisticamente ruinosa<br />

do poema de John Shade; Hermann Hermann, outro autista, em<br />

Desespero, com seu crime malfadado e seu romance sem futuro. Na<br />

medida em que Lolita é uma criação de Humbert, este tem a<br />

oportunidade de uma redenção parcial ao nos legar este livro que tem<br />

“fragmentos de medula agarrados aqui e ali, um pouco de sangue e<br />

lindas moscas de um verde reluzente”. Essas moscas: pensamos antes<br />

em suas irmãs “horrivelmente experientes”, “ziguezagueando para<br />

seguir a pegajosa trilha do açúcar derramado” numa suja lanchonete de<br />

beira de estrada em algum estado das ex-pradarias. Mas nem tudo no<br />

livro vem da pena de Humbert. Não é ele o responsável pelo Prefácio,<br />

onde ficamos sabendo da morte de Lolita na mesa de parto. O pecado de<br />

Humbert é biológico, um pecado contra o comum. Ele torna a biologia<br />

comum impossível; o casamento, o parto, uma filha, a felicidade simples,<br />

a saúde comum, em “Gray Star, localidade do extremo noroeste dos<br />

EUA” e “a capital do livro”, como assinala Nabokov. Pode ou não<br />

constituir surpresa para Humbert ficar sabendo que o que ele escreveu<br />

não é uma história de amor, mas uma paródia.<br />

O que provoca o riso dos seres humanos? Não a simples alegria ou<br />

ironia. Que o riso exclua a seriedade é um equívoco muitas vezes<br />

cometido pelos desprovidos de humor — e por essa multidão bem mais<br />

numerosa, os que nunca riem, os deficientes ou pouco dotados em<br />

matéria de humor. Os seres humanos riem, se formos prestar atenção,<br />

para exprimir alívio, exasperação, estoicismo, histeria, constrangimento,<br />

repulsa e crueldade. Lolita talvez seja o romance mais engraçado da<br />

nossa língua, porque admite toda a complexidade e diversidade do riso.<br />

Ouvimos o tom de excesso característico quando Humbert usa seu<br />

“bichinho” como vítima de sua presença de espírito e de sua prosa; este<br />

é o riso que ouvimos (sem muita frequência, espero) quando<br />

reconhecemos a absoluta perfeição de nossa própria sordidez moral.<br />

“Sórdido” é uma palavra amplamente conspícua por sua ausência na<br />

narrativa de Humbert. Sua única incidência voltada contra si mesmo,<br />

acho, aparece (entre parênteses) nos Caçadores Encantados, quando ele<br />

admite que a história dos soníferos é “uma história consideravelmente<br />

sórdida, entre nous soit dit”. A frase em francês que dá um fecho<br />

supostamente ameno à frase é um componente importante da máscara<br />

corrosiva de Humbert. E temos a sensação de que nosso riso se esgotou<br />

quando, admirando com relutância as mãos de Richard F. Schiller (o sr.<br />

Lo), Humbert escreve:<br />

já machuquei demais um excesso de corpos com minhas pobres mãos retorcidas para<br />

orgulhar-me delas. Epítetos franceses, nós dos dedos de um camponês de Dorset, as

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