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meses uma convalescença dolorosa e repulsiva, entrecortada por todo<br />

tipo de cirurgias imencionáveis e penosas recaídas, e talvez até uma<br />

visita dele, em que eu teria problemas para racionalizar que não se<br />

tratava de um fantasma. Sem dúvida são Tomé tinha razão. É estranho<br />

que o sentido do tato, tão infinitamente menos precioso para os homens<br />

que a visão, em momentos críticos se transforme em nosso principal, se<br />

não único, canal de comunicação com a realidade. Eu estava coberto de<br />

Quilty — trazia a sensação de quando rolamos pelo chão antes que ele<br />

começasse a sangrar.<br />

A estrada agora se estendia reta em meio a um campo aberto, e<br />

ocorreu-me — não à guisa de protesto, não como símbolo ou nada<br />

parecido, mas meramente como uma experiência inédita — que, como<br />

eu transgredira todas as leis da humanidade, podia transgredir também<br />

as leis do trânsito. De maneira que tomei a pista da esquerda para ver<br />

qual era a sensação, e a sensação foi boa. Era um agradável<br />

fervilhamento no diafragma, com elementos de tatilidade difusa, tudo<br />

realçado pela ideia de que nada podia chegar mais perto de eliminar as<br />

leis fundamentais da física do que dirigir propositalmente pela<br />

contramão. De certo modo, respondia a um anseio muito espiritual.<br />

Suavemente, sonhadoramente, nunca excedendo trinta quilômetros por<br />

hora, continuei a dirigir naquele extravagante lado do espelho. O tráfego<br />

era leve. Os carros que de vez em quando me ultrapassavam, usando a<br />

pista que eu lhes abandonara, buzinavam brutalmente para mim. Os<br />

carros que vinham na minha direção oscilavam um pouco, desviavam-se<br />

e berravam de medo. Em seguida constatei que me aproximava de<br />

localidades povoadas. Ignorar o sinal vermelho era como um gole do<br />

Borgonha proibido quando era menino. Enquanto isso, complicações se<br />

manifestavam. Eu vinha sendo seguido e escoltado. Depois, à minha<br />

frente, vi dois carros colocarem-se de lado, bloqueando meu caminho por<br />

completo. Com um movimento gracioso, deixei o leito da estrada e, após<br />

dois ou três grandes saltos, subi uma rampa relvada em meio a vacas<br />

perplexas, e no alto parei com um suave movimento de balanço. Uma<br />

espécie de refletida síntese hegeliana ligando duas mulheres mortas.<br />

Logo eu seria retirado do carro (Olá, Melmoth, muito obrigado, meu<br />

velho) — e estava, na verdade, ansioso por render-me a muitas mãos,<br />

sem fazer nada para cooperar, enquanto eles se moviam e me<br />

carregavam, relaxado, confortável, numa entrega preguiçosa de<br />

paciente, extraindo um prazer bizarro da minha falta de energia e do<br />

apoio absolutamente confiável que me proporcionavam os policiais e o<br />

pessoal da ambulância. E enquanto eu esperava que eles chegassem em<br />

sua corrida até onde eu me encontrava no alto da encosta, evoquei uma<br />

derradeira miragem de espanto e desamparo. Um dia, logo depois que<br />

ela desapareceu, um ataque de náusea abominável forçara-me a

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