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transparentes meias de seda bege e congratulei-me por trazer na mala<br />

do carro algumas roupas excelentes — um colete com botões de nácar,<br />

por exemplo, uma gravata clara de cashmere e assim por diante.<br />

Não consegui, infelizmente, manter meu desjejum no estômago, mas<br />

não dei importância a essa manifestação física, simples contratempo<br />

trivial; limpei a boca com um lenço rendado que retirei da manga e, com<br />

um bloco de gelo azul no lugar do coração, uma pílula na língua e a<br />

morte sólida no bolso traseiro da calça, entrei numa cabine telefônica de<br />

Coalmont (Ah-ah-ah, disse a portinhola), de onde liguei para o único<br />

Schiller — Paul, móveis — que encontrei no catálogo surrado. O rouco<br />

Paul revelou-me que conhecia de fato um Richard, filho de um primo<br />

seu, e o endereço onde ele morava era, deixe eu ver, 10 Killer Street (não<br />

estou me esforçando muito na busca dos meus nomes falsos). Ah-ah-ah,<br />

disse a portinhola da cabine.<br />

O número 10 da Killer Street era uma casa dividida em pequenos<br />

apartamentos, e ali entrevistei várias criaturas idosas e desoladas, além<br />

de duas ninfetas incrivelmente sujas de longos cabelos ruivos bem claros<br />

(distraidamente, só por esporte, o antigo monstro em mim continuava<br />

olhando em volta à procura de alguma criança pouco vestida que<br />

pudesse apertar contra o meu corpo por um minuto que fosse, depois<br />

que acabasse a matança, nada mais fizesse diferença e tudo me fosse<br />

permitido). Sim, Dick Skiller tinha morado ali, mas se mudara depois de<br />

casado. Ninguém sabia o endereço novo. “Pode ser que saibam na loja”,<br />

disse uma voz de baixo profundo emergindo de uma escotilha aberta<br />

perto da qual eu por acaso me postara junto às duas meninas de braços<br />

finos e pés descalços e suas avós desbotadas. Entrei na loja errada e um<br />

negro velho e cansado sacudiu a cabeça antes mesmo que eu pudesse<br />

perguntar-lhe qualquer coisa. Atravessei para uma deprimente<br />

mercearia do outro lado da rua e lá, convocada por um cliente a meu<br />

pedido, uma voz de mulher vinda de algum abismo de madeira abaixo<br />

do piso, contrapartida da escotilha, exclamou: Hunter Road, a última<br />

casa.<br />

A Hunter Road ficava a quilômetros dali, numa área ainda mais<br />

desolada, toda valão e despejo de lixo, e hortas roídas de lagartas, e<br />

barracões e chuva fria e cinzenta, e lama vermelha, e várias chaminés<br />

que fumegavam à distância. Estacionei à frente da última “casa” — um<br />

barraco de compensado, próximo a duas ou três habitações semelhantes<br />

um pouco mais distantes do leito da rua, e à toda volta uma extensão de<br />

ervas murchas. Sons de martelo vinham da traseira da casa, e por vários<br />

minutos fiquei sentado imóvel em meu velho carro, velho e frágil ao cabo<br />

da jornada, bem perto de alcançar o gasto sonho: finis, meus camaradas,<br />

finis, meus demônios. Era em torno das duas. Meu pulso bateu quarenta<br />

vezes num minuto e cem no minuto seguinte. A chuva fina crepitava no

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