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que só podia contar comigo mesmo. Detetive algum seria capaz de<br />

interpretar as pistas que Trapp deixara tendo em vista o meu espírito e o<br />

meu modo de ser. Não imaginei, claro, que ele jamais tivesse declarado<br />

seu nome e endereço verdadeiros; mas sempre esperava que pudesse<br />

escorregar no verniz de sua própria sutileza, ao se atrever, digamos, a<br />

incluir uma pincelada de cor mais rica e pessoal além do estritamente<br />

necessário, ou a acabar revelando muito através da soma qualitativa de<br />

partes quantitativas que, de per si, revelavam muito pouco. Uma coisa<br />

ele obteve: conseguiu enredar-me totalmente, em profunda angústia, no<br />

seu jogo demoníaco. Com uma habilidade infinita, ele oscilava, hesitava,<br />

mas acabava recuperando um equilíbrio impossível, deixando-me<br />

sempre com a esperança esportiva — se é que posso aplicar o termo a<br />

esse caso de traição, fúria, desolação, horror e ódio — de um embate<br />

seguinte em que acabasse por se entregar. O que nunca chegou a<br />

ocorrer — embora por pouco. Todos admiramos o acrobata revestido de<br />

lantejoulas que com uma graça clássica percorre meticulosamente sua<br />

corda esticada à luz magnésica; mas como é mais rara a arte do<br />

especialista na corda bamba que enverga roupas de espantalho e finge<br />

ser um bêbado grotesco! E eu bem devia saber disso.<br />

As pistas que deixou para trás não estabeleciam sua identidade, mas<br />

refletiam sua personalidade, ou pelo menos uma certa personalidade<br />

homogênea e bem marcada; seu gênero, seu tipo de humor — pelo<br />

menos quando exibia seus lampejos —, o tom de seu cérebro tinham<br />

muito a ver comigo. Ele me arremedava e me atormentava. Suas alusões<br />

eram definitivamente cultas. Era um homem lido. Sabia francês.<br />

Mostrava-se versado em logodedalia e logomancia. Era amador do<br />

folclore em torno do tema do sexo. Tinha uma caligrafia feminina.<br />

Mudava de nome, mas não conseguia disfarçar, por mais que tentasse<br />

recliná-los, seus t’s, w’s e l’s muito peculiares. Quelquepart Island era<br />

uma de suas residências favoritas. Não usava caneta-tinteiro, fato que,<br />

como qualquer psicanalista poderá lhes dizer, significa que o paciente é<br />

um undinista reprimido. Só podemos esperar, piedosamente, que ninfas<br />

da água existam no Estige.<br />

Seu traço principal era a paixão tantalizante. Deus do céu, como me<br />

provocava! Desafiava sempre minha erudição. Tenho orgulho suficiente<br />

por conhecer algumas coisas para mostrar-me modesto por não saber de<br />

tudo; e confesso não ter captado todos os elementos daquela<br />

perseguição criptográfica. Que estremecimento de triunfo e horror<br />

sacudia meu frágil arcabouço quando, em meio aos nomes comuns e<br />

inocentes de um registro de hotel, seu diabólico enigma de repente<br />

ejaculava em meu rosto! E percebi ainda que, sempre que lhe parecia<br />

que as mensagens em código estavam ficando recônditas demais,<br />

mesmo para um oponente do meu porte, ele tornava a me fisgar com um

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