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com fartos goles de um refrescante frasco de bolso.<br />

A chuva fora cancelada quilômetros antes. A noite era quente e<br />

escura, em algum ponto da região dos Apalaches. De tempos em tempos<br />

um carro passava, as luzes traseiras vermelhas recuando, as luzes<br />

brancas avançando, mas a cidade estava morta. Ninguém passeava e ria<br />

pelas calçadas como teria sido o lazer costumeiro dos locais na doce,<br />

branda e apodrecida Europa. Pude aproveitar sozinho a noite inocente e<br />

meus terríveis pensamentos. Um receptáculo de metal na esquina<br />

descrevia com extrema minúcia os tipos de conteúdo que se dispunha a<br />

aceitar: Folhas. Papel. Detritos Não. Letras luminosas de um vermelhocereja<br />

assinalavam uma loja de fotografia. Um termômetro imenso com<br />

o nome de um laxativo residia silencioso na fachada de uma drogaria. A<br />

Joalheria Rubinov tinha um letreiro em que diamantes artificiais se<br />

refletiam num espelho rubro. Um relógio verde e iluminado flutuava nas<br />

profundezas de roupa limpa da Lavanderia Jiffy Jeff. Do outro lado da rua,<br />

uma oficina falava no sono — lubricidade genuflexa; e se corrigia, Gulflex<br />

Lubrificantes. Um aeroplano, também incrustado de gemas por Rubinov,<br />

atravessou, rugindo, os céus de veludo. Quantas cidadezinhas na calada<br />

da noite eu não tinha visto! E aquela ainda não seria a minha derradeira.<br />

Deixem-me perder um pouco mais de tempo, ele já estava<br />

praticamente destruído. Em algum ponto do outro lado da rua, as luzes<br />

de neon pulsavam duas vezes mais devagar que meu coração: a forma<br />

que contornava o letreiro de um restaurante, uma cafeteira imensa,<br />

transbordava, mais ou menos a cada segundo, de vida cor de esmeralda<br />

e, cada vez que se extinguia, era sucedida por letras cor-de-rosa dizendo<br />

Servimos Refeições, mas a essa altura a cafeteira ainda podia ser<br />

percebida como uma sombra latente que tentava preservar a atenção do<br />

olho até sua próxima ressurreição esmeraldina. Capturamos impressões<br />

de sombras. Aquele burgo furtivo não ficava longe dos Caçadores<br />

Encantados. Eu chorava novamente, intoxicado com o passado<br />

impossível.<br />

31<br />

Nessa solitária pausa para restauração entre Coalmont e Ramsdale<br />

(entre a inocente Dolly Schiller e o jovial Tio Ivor), passei meu caso em<br />

revista. Com supremas simplicidade e clareza agora eu via a mim<br />

mesmo e ao meu amor. Tentativas anteriores pareciam fora de foco em<br />

comparação. Poucos anos antes, orientado por um inteligente confessor<br />

de língua francesa a quem, num momento de curiosidade metafísica,<br />

decidira apresentar meu ateísmo despojado de protestante na esperança<br />

de alguma ultrapassada cura papista, eu me esforçara para deduzir a<br />

existência de um Ser Supremo a partir da minha noção intuitiva de<br />

pecado. Nessas frígidas manhãs da Quebec rendilhada de gelo, o bom<br />

sacerdote dedicara-se a trabalhar-me com suas mais profundas ternura e

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