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Já Humbert é claramente muito cruel com Lolita, mas não só no<br />

implacável sine qua non com que subjuga a garota, em sua intenção<br />

sonhadora de livrar-se “de algum modo” dela quando seu breve apogeu<br />

tiver passado, e nem mesmo em sua observação minuciosa dos sinais de<br />

desgaste em sua amante “frígida” e “envelhecida”. Humbert é<br />

insuperavelmente cruel ao usar Lolita como vítima de seu espírito rápido<br />

e da agilidade da sua prosa — sua prosa que, às vezes, lembra “os trajes<br />

de festa encharcados de suor” que um “brutamontes de quarenta anos”<br />

pode despreocupada e legalmente tirar (nos dois hemisférios, como<br />

assinala um Humbert escandalizado) antes de “investir fundo em sua<br />

jovem noiva”. Moralmente, o romance é repleto de ressonâncias e<br />

ricochetes. Por mais cruel que Humbert seja com Lolita, Nabokov mostrase<br />

mais cruel ainda com Humbert — de uma crueldade cheia de artifício.<br />

Todos concordamos com o sorriso de desdém do narrador quando ele<br />

começa o capítulo sobre os subornos sexuais com a seguinte frase:<br />

“Tenho agora pela frente a desagradável tarefa de registrar uma queda<br />

perceptível no comportamento moral de Lolita.” Depois que o sorriso se<br />

congela, porém, vemo-nos diante do monturo moral em que Humbert se<br />

transformou, por trás de suas sobrancelhas arqueadas. Irresistível e<br />

imperdoável. É complicado, e nada reconfortante. Ainda assim, é desse<br />

modo que funciona.<br />

Lolita, por sua vez, transformou-se a essa altura num tal espécime de<br />

antologia que mesmo os não leitores do romance são capazes de fechar<br />

os olhos e vê-la na quadra de tênis, à beira da piscina, enrodilhada no<br />

banco do carro ou numa das camas de um quarto de motel com suas<br />

“ridículas” histórias em quadrinhos. Tendemos a esquecer que essa<br />

criação cegante não passa apenas disso: uma criação, e uma criação de<br />

Humbert Humbert. Só temos a palavra de Humbert para nos dizer quem<br />

ela é. E quaisquer que sejam os defeitos de Humbert, nem mesmo sua<br />

mãe de vida breve — “(piquenique, raio)” — poderia dizer que seu filho<br />

joga limpo. (Na verdade, o baralho que ele usa inclui as cinquenta e duas<br />

cartas de sempre, mais um monte de coringas, vários dois marcados e<br />

rainhas com três olhos.) Narrador confiável no sentido estrito, Humbert<br />

não é confiável sob nenhum outro ponto de vista; e lembremos que<br />

Nabokov foi capaz de escrever obras inteiras de ficção — Desespero, O<br />

olho, Fogo pálido — em que os narradores não tinham a menor ideia do<br />

que acontecia à sua volta. Lolita, acredito, foi em parte isolada e<br />

distorcida por sua celebridade. “O maior romance de arrebatamento da<br />

literatura moderna”, afirma a capa de sua primeira edição pela Penguin,<br />

que também nos informa, na contracapa, que Humbert é inglês.<br />

Não teremos sido condicionados a imaginar que Lolita seja sui<br />

generis, uma ovelha negra, uma obra de erotismo de bom gosto e na<br />

verdade “belíssimo”, e que o próprio Nabokov, com esse romance em

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