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Mestiça, pois confesso que, dependendo da condição de meus gânglios e<br />

minhas glândulas, ocorria-me transitar num só dia de um polo a outro da<br />

insanidade — da ideia de que me veria obrigado em torno de 1950 a<br />

livrar-me de alguma forma de uma adolescente difícil, cuja mágica<br />

ninfalidade se evaporara, à ideia de que, com paciência e sorte e o<br />

devido tempo, eu poderia fazê-la produzir uma ninfeta com meu sangue<br />

em suas veias magníficas, uma Lolita Segunda, que viria a completar<br />

oito ou nove anos em torno de 1960, quando eu ainda estaria dans la<br />

force de l’âge; na verdade, a telescopia de minha mente, ou de meu<br />

espírito de-mente, permitia-me distinguir nas lonjuras do tempo um<br />

vieillard encore vert — ou seria o verde da putrefação? —, o bizarro, o<br />

carinhoso, o salivante dr. Humbert, praticando com a supremamente<br />

deleitável Lolita Terceira a arte de ser avô.<br />

Nos dias daquela louca viagem que fizemos, eu não duvidava de ser<br />

um fracasso risível em matéria de pai da Lolita Primeira. Fazia o possível,<br />

lia e relia um livro com o título involuntariamente bíblico de Conheça sua<br />

filha, comprado na mesma loja onde adquiri para Lo, como presente de<br />

décimo terceiro aniversário, um volume de luxo, com “lindas” ilustrações<br />

comerciais, da Pequena sereia de Andersen. Mas mesmo em nossos<br />

melhores momentos, quando líamos lado a lado num dia de chuva (o<br />

olhar de Lo escapando da janela para seu relógio de pulso e de volta para<br />

a janela), ou consumíamos uma tranquila refeição substancial num<br />

restaurante lotado, ou disputávamos uma rodada de algum jogo de<br />

cartas infantil, ou saíamos às compras, ou contemplávamos em silêncio,<br />

juntamente com os outros motoristas e seus filhos, algum carro<br />

espatifado e coberto de sangue com o sapato de uma mulher jovem<br />

largado na vala (Lo, enquanto passávamos ao lado: “Exatamente o tipo<br />

de mocassim que eu tentei descrever para aquele cretino na<br />

sapataria!”); em todas essas ocasiões eventuais, a meus próprios olhos<br />

eu parecia um pai tão implausível quanto ela parecia uma filha. Seria,<br />

talvez, nossa locomoção movida pela culpa a responsável por corroer<br />

nossos poderes de mimetização? Seria possível algum progresso com um<br />

domicílio fixo e para ela a rotina dos dias de estudante?<br />

Na minha escolha de Beardsley, fui guiado não só pelo fato de haver<br />

ali uma escola comparativamente tranquila para moças, mas também<br />

pela presença da faculdade feminina, o College for Women. Em meu<br />

desejo de me tornar casé, de me fixar de algum modo em alguma<br />

superfície texturizada com que minhas riscas pudessem confundir-se,<br />

lembrei-me de um homem que conhecera no departamento de francês<br />

do Beardsley College; ele tivera a gentileza de adotar meu livro em seus<br />

cursos, e certa vez tentara convidar-me a fazer uma palestra. Não tive a<br />

menor intenção de aceitar, já que, como observei em algum ponto<br />

destas confissões, existem poucos tipos físicos que eu ache mais

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