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Foi frequentemente sugerido que a “moral” de Lolita não é inerente, mas<br />

de alguma forma acoplada ao fim do livro, como a última cena de<br />

Psicose, de Alfred Hitchcock, em que um psiquiatra de pele escura brota<br />

do nada para explicar em jargão impecável as depravações muito<br />

peculiares que reinavam naquele motel muito peculiar. Como se, ao<br />

cabo de 260 páginas de devassidão (em que Nabokov “se deixasse<br />

levar”), o autor adquirisse alguma sobriedade, desferindo uma cutelada<br />

seca no falo com o lado da mão, e começasse a modificar seu desfecho<br />

com o acréscimo de alguns chavões espirituais que pudessem conferirlhe<br />

uma certa respeitabilidade. Humbert na encosta implorando o<br />

perdão de Lolita e da paisagem americana, Humbert fazendo sua última<br />

visita à enfeada e emprenhada sra. Richard F. Schiller (durante a qual,<br />

deve-se notar, sua crueldade se manifesta sem qualquer diluição: “deixe<br />

esse seu Dick incidental, e esse buraco horrendo...”), as últimas<br />

memórias que Humbert tem de Lolita como a menina totalmente<br />

comum que ela insistia em ser, ao longo de tudo: essas cenas<br />

conquistaram justa fama (e ainda conseguem fazer o leitor atual<br />

derramar lágrimas tão quentes quanto as de Humbert), e até o crítico de<br />

opinião diversa irá admitir que possuem uma certa força emocional. Mas<br />

o que nos comove não é um artifício editorial bem realizado. O que nos<br />

comove é o fim de Lolita, seu caráter final e sua justiça, porque — talvez<br />

só subliminarmente — já esperávamos por ele. Mesmo hoje, mesmo<br />

depois de transcorridas duas vidas inteiras de Lolita, as pessoas ainda se<br />

aproximam de Dmitri Nabokov e lhe perguntam como foi ter sido filho de<br />

um homem tão devasso. Mesmo os leitores mais sofisticados ainda<br />

imaginam que Nabokov tivesse algum motivo para sentir-se culpado. Os<br />

grandes romances abalam; e então, depois que o choque se enfraquece,<br />

sentimos os abalos secundários.<br />

A imagem dominante de Lolita, que o leitor de primeira viagem<br />

tantas vezes deixa de perceber (como aconteceu comigo mesmo, anos<br />

atrás), aparece esboçada em sua introdução: Lolita na mesa de parto,<br />

morta, com sua filha natimorta. Vejamos quais formas e matizes<br />

Nabokov empresta a essa rígida silhueta. Em Paris, quando Humbert se<br />

limita a visitar prostitutas “cuja mera juventude compensaria eu correr o<br />

risco de alguma doença pavorosa”, entra em contato com uma<br />

especialista qui pourrant arranger la chose, e, no dia seguinte,<br />

uma mulher asmática, o rosto coberto por maquilagem grosseira, cheirando a alho e<br />

muito loquaz com um sotaque provençal quase farsesco e um bigode negro sobre um<br />

lábio arroxeado, levou-me até o que parecia ser seu próprio domicílio e lá, depois de um<br />

beijo explosivo nas pontas reunidas de seus dedos gordos para assinalar a deleitável<br />

qualidade de botão de sua mercadoria, afastou teatralmente uma cortina para revelar o<br />

que julguei ser a parte do aposento onde uma família extensa e pouco exigente<br />

costumava dormir. Naquele momento estava vazia, salvo por uma rapariga de pelo<br />

menos uns quinze anos monstruosamente gorda, descorada e de uma feiura repulsiva,

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