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especial, de algum modo “deixou-se levar”? Os grandes escritores,<br />

porém, nunca se deixam levar. Nem mesmo os escritores medianos<br />

jamais se deixam levar. As pessoas que escrevem um romance e depois<br />

retornam ao jornalismo ou à contabilidade (“Mais alto, vagabunda!”),<br />

essas sim deixam-se levar. Lolita é mais austero que arrebatado, como<br />

toda literatura; e passei a considerá-lo, com admiração cada vez maior,<br />

exatamente o tipo de romance para o qual apontavam seus<br />

predecessores. Ele constrói uma mente da mesma forma que Browning<br />

em prosa poderia tentar fazê-lo, através de um rigoroso monólogo<br />

dramático. Talvez a própria Lolita, pelo menos em princípio, seja uma<br />

criatura mais triste, banal e comum do que Humbert Humbert está<br />

disposto ou inclinado a retratar (como a garota “certamente um tanto<br />

sem graça” que sua mãe desprezada vê). Pode ser que Lolita, tão<br />

identificada com “a geografia dos Estados Unidos” que sua história “põe<br />

em movimento”, seja até certo ponto a invenção delirante de um<br />

expatriado. É mais que uma produção imaginária (mais que a Dulcineia<br />

de Dom Quixote), mas também é uma exteriorização da cintilante<br />

peculiaridade de Humbert.<br />

Humbert é um narcisista. Hesitamos em explorar as conexões<br />

psicológicas, ou até em simplesmente fazê-las, entre o narcisismo e a<br />

pedofilia clássica (e Freud deve ter tido algum valor, podemos<br />

desconfiar, para irritar a tal ponto o grande Nabokov), mas esses dois<br />

distúrbios são claramente regressivos ou anoréxicos, exprimindo a<br />

relutância em abandonar a perfeição sentimental em escala reduzida da<br />

infância. “Pulando corda, jogando amarelinha... Ah, deixem-me em paz”,<br />

geme Humbert, “no meu parque pubescente, meu jardim de musgos.<br />

Deixem-nas brincar à minha volta para sempre. Não cresçam jamais”.<br />

Antes ainda no romance, quando fala de sua criança amada Annabel,<br />

Humbert descreve uma fotografia de seu grupo: Annabel “não saiu muito<br />

bem” (debruçada sobre seu chocolat glacé), “mas eu”, entusiasma-se<br />

Humbert,<br />

sentado um tanto à parte dos demais, apareço na foto com uma conspicuidade um tanto<br />

dramática: um menino sorumbático de testa proeminente, vestindo uma camisa esporte<br />

escura e curtas calças claras bem cortadas, com as pernas cruzadas, sentado de perfil,<br />

olhando para a distância.<br />

Dramática, sorumbática, bem cortada, olhando para a distância: eis uma<br />

linguagem tipicamente romântica. O caminho do amor por si mesmo é<br />

sempre pedregoso. Mas o amor compartilhado por Humbert e Humbert,<br />

na aspereza ou na suavidade, é inquestionavelmente real.<br />

Nenhum narrador da literatura, creio eu, discorre sobre seu próprio<br />

esplendor físico de maneira tão apaixonada e cômica quanto o narrador<br />

de Lolita. Com sua “boa aparência considerável, embora um tanto

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