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Mary, o solitário Joseph Lore, sonhava com Oloron, Lagore, Rolas — que<br />

sais-je! — ou seduzia uma ovelha. Pensamentos errantes e fragrantes<br />

como esses sempre me serviram de consolo em momentos de tensão<br />

extrema, e só quando, a despeito de liberais libações, senti-me<br />

razoavelmente entorpecido pela noite interminável é que me ocorreu<br />

dirigir de volta até o motel. A velhinha desaparecera, e eu não estava<br />

muito seguro do caminho. Largas estradas revestidas de cascalho<br />

cruzavam sonolentas sombras retangulares. Avistei o que me parecia a<br />

silhueta de um cadafalso mas devia ser provavelmente o playground de<br />

uma escola; e em outro quarteirão praticamente deserto erguia-se sob<br />

uma cúpula silenciosa o templo desbotado de alguma seita local.<br />

Encontrei finalmente a estrada, e em seguida o motel, onde milhões de<br />

traças enxameavam em torno dos contornos em neon de “Não Temos<br />

Vagas”; e quando, às três da manhã, depois de um desses<br />

extemporâneos banhos quentes de chuveiro que, à semelhança de<br />

algum mordente, só fazem fixar o desespero e o cansaço de um homem,<br />

deitei-me em sua cama que recendia a castanhas e rosas, e hortelãpimenta,<br />

e o perfume francês muito especial e muito delicado que<br />

ultimamente eu permitia que ela usasse, constatei-me incapaz de<br />

assimilar o fato concreto de que, pela primeira vez em dois anos, estava<br />

separado da minha Lolita. Na mesma hora ocorreu-me que aquela<br />

doença dela era de algum modo o desdobramento de um tema —<br />

conservando a mesma intenção e o mesmo tom da série de impressões<br />

associadas que me vinham intrigando e atormentando ao longo de toda<br />

a nossa viagem; visualizei aquele agente secreto, ou amante secreto, ou<br />

pregador de peças, ou alucinação, ou fosse o que fosse, rondando em<br />

torno do hospital — e a Aurora mal “aquecera suas mãos”, como dizem<br />

os colhedores de lavanda em meu país de nascença, quando me vi<br />

tentando entrar novamente naquele calabouço, batendo em suas portas<br />

verdes, sem desjejum, sem evacuar, em desespero.<br />

Era terça-feira, e quarta ou quinta, reagindo esplendidamente como<br />

a adorável criança que era a algum preparado medicinal (esperma de<br />

estorninho ou estrume de esturjão), ela já estava muito melhor, e o<br />

médico declarou que em mais dois dias estaria de novo “aos pinotes”.<br />

Das oito vezes que a visitei, só a última permanece gravada com<br />

nitidez na minha mente. Já fora uma façanha considerável chegar até lá,<br />

pois a infecção que a essa altura atuava também em mim deixava-me<br />

com a sensação de ser totalmente oco por dentro. Ninguém pode<br />

imaginar o esforço que representava carregar aquele ramo de flores,<br />

aquele fardo de amor, aqueles livros que eu cruzara cem quilômetros<br />

para comprar: as Obras teatrais de Browning, A história da dança,<br />

Clowns e colombinas, O balé russo, Flores das Montanhas Rochosas,<br />

Antologia da sociedade dos autores teatrais, e o livro Tênis, de Helen

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