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desesperada de cobertura — e, no mesmo preciso instante, algo que me<br />
lembrou uma imensa bola de borracha decorada de bolinhas em meio às<br />
moitas transformou-se na figura gradualmente mais ereta de uma<br />
senhora corpulenta com cabelos curtos da cor da asa do corvo, que<br />
automaticamente acrescentou um lírio silvestre a seu buquê ao mesmo<br />
tempo que nos olhava por cima do ombro logo além de suas adoráveis<br />
crianças escavadas em granito azulado.<br />
Hoje, que carrego muitos outros estragos na consciência, sei que sou<br />
um homem corajoso, mas naquele tempo ainda não sabia disso, e me<br />
lembro de ficar surpreso com meu sangue-frio. Com ordens murmuradas<br />
em voz baixa como as que se usam para comandar um animal treinado,<br />
manchado de suor, agitado e obediente, mesmo na pior das dificuldades<br />
(que esperança louca, ou que ódio louco, faz pulsar os flancos da jovem<br />
criatura, quantas estrelas negras cravam-se no coração do domador!), eu<br />
disse a Lo que se levantasse, e caminhamos decorosamente, e depois<br />
rompemos num trote indecoroso, até o carro. Atrás dele via-se uma<br />
vistosa caminhonete estacionada, e um belo assírio com uma curta<br />
barba negro-azulada, un monsieur très bien, de camisa de seda e calças<br />
magenta, presumivelmente o marido da robusta botânica, fotografava<br />
com expressão grave a tabuleta que assinalava a altitude do local. Era de<br />
bem mais que 3.000 metros, e eu estava praticamente sem fôlego; com<br />
uma pisada forte e as rodas patinando partimos dali, Lo ainda<br />
engalfinhada com suas roupas e me amaldiçoando com uma linguagem<br />
que eu jamais sonhara ser do conhecimento, quanto mais do uso, de<br />
uma menina de sua idade.<br />
Houve outros incidentes desagradáveis. Como um certo cinema, por<br />
exemplo. Na época, Lo ainda tinha pelo cinema uma verdadeira paixão<br />
(que haveria de declinar em tépida condescendência ao longo de seu<br />
segundo ano de escola secundária). Assistimos, voluptuosa e<br />
indiscriminadamente, eu diria, ah, uns cento e cinquenta a duzentos<br />
filmes ao longo desse ano, e em alguns dos períodos mais densos de<br />
frequência ao cinema assistimos a muitos dos cinejornais mais de meia<br />
dúzia de vezes, pois o mesmo cinejornal semanal acompanhava vários<br />
filmes diferentes e nos perseguia de cidade em cidade. Seus gêneros<br />
favoritos eram, pela ordem: filmes musicais, filmes do submundo e<br />
filmes de faroeste. Nos primeiros, cantores e dançarinos de verdade<br />
seguiam carreiras artísticas irreais numa esfera da existência<br />
essencialmente à prova de dor da qual a morte e a verdade eram<br />
banidas, e onde, no final, com os cabelos brancos, os olhos marejados,<br />
tecnicamente infenso à morte, o pai originalmente relutante de uma<br />
garota louca pelo mundo do espetáculo sempre aplaudia sua apoteose<br />
final numa Broadway de fábula. O submundo era uma coisa à parte:<br />
nele, jornalistas heroicos eram torturados, as contas telefônicas