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louco, faz pulsar os flancos da jovem criatura, quantas estrelas negras cravam-se no<br />

coração do domador!), eu disse a Lo que se levantasse, e caminhamos decorosamente,<br />

e depois rompemos num trote indecoroso, até o carro... e com uma pisada forte e as<br />

rodas patinando partimos dali, Lo ainda engalfinhada com suas roupas e me<br />

amaldiçoando com uma linguagem que eu jamais sonhara ser do conhecimento, quanto<br />

mais do uso, de uma menina de sua idade.<br />

Sensível Humbert, que acha os palavrões tão “revoltantes”. Estremeço só<br />

de pensar no quanto o seu fantasma, ataviado com seu fantasmagórico<br />

smoking jacket, poderia vir assombrar-me por qualificá-lo de vulgar e<br />

filisteu. Na verdade ele pertence a uma espécie mais perigosa e mais<br />

rara (embora muito vastamente representada no corpo da obra de<br />

Nabokov): essas pessoas, como não conseguem produzir arte na vida,<br />

transformam suas vidas em arte. Humbert é o artista manqué. Para ver a<br />

magia das ninfetas “você precisa ser um artista e um louco”, afirma<br />

Humbert em suas primeiras páginas (“ah, como precisa encolher-se e se<br />

esconder!”). Disposto a extorquir soníferos ainda mais poderosos do<br />

médico da família (para com eles desacordar a ninfeta inerme), ele<br />

obtém cápsulas azuis e roxas destinadas “não aos neuróticos que um<br />

jato d’água poderia acalmar se bem aplicado, mas só aos grandes<br />

artistas insones que precisavam morrer por algumas horas a fim de viver<br />

por todos os séculos”. Choroso, Humbert derrama lágrimas maiores que<br />

a média, “as lágrimas mornas, grossas e opalescentes que derramam os<br />

poetas e os amantes”. Ele é “o Catulo”, “o pobre Catulo” de Lolita: “As<br />

regiões gentis e oníricas através das quais eu avançava a custo eram<br />

patrimônio dos poetas — e não o território onde o crime espreita.” Tudo<br />

blasfêmia e conversa fiada, naturalmente. Quem além de Hum poderia<br />

descrever o calculado adiamento do seu orgasmo (no sofá, com uma Lo<br />

ainda inocente) como “uma proeza fisiológica de controle e manutenção<br />

do equilíbrio comparável a certas técnicas das artes plásticas”?<br />

“Enfaticamente, não somos assassinos”, clama Humbert: “Poetas nunca<br />

matam.” Mas este sim. Antes de puxar o gatilho ele recita um poema:<br />

uma paródia — nas circunstâncias, uma paródia grotesca — de “Ash<br />

Wednesday”. E Nabokov nunca dedicou muito tempo a Eliot.<br />

Necessariamente desprovido de censura (um vizinho é “carrasco<br />

aposentado ou antigo escritor de panfletos religiosos — quem dava a<br />

mínima?”), Humbert Humbert, por toda a sua vida, aspirou às grandes<br />

calamidades, a explosões, terremotos, situações onde “nada importava<br />

muito”, onde “nada fazia mais diferença, e tudo era permitido”. (“Um<br />

naufrágio. Um atol. A sós com a órfã de um passageiro afogado, sacudida<br />

por calafrios. Querida, estamos só brincando!”) Na arte, num certo<br />

sentido, nada faz mesmo diferença; ninguém sai ferido; é só uma<br />

brincadeira. Mas um acerto de contas artístico precisa chegar a termo e,<br />

em Nabokov, a própria arte providencia o descrédito e o castigo. Suas<br />

figuras manquées pagam um alto preço por sua presunção, por suas

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