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desconforto generalizado que ele poderia tomar minha rainha; ele<br />

reparou também, mas achando que podia ser uma armadilha de seu<br />

ardiloso adversário, passou pelo menos um minuto refletindo, bufando e<br />

arquejando, sacudindo as bochechas e até me lançando olhares furtivos,<br />

enquanto fazia rudimentos hesitantes de gestos com seus dedos<br />

gorduchos reunidos — louco para tomar aquela suculenta rainha mas<br />

sem ousar fazê-lo — até atirar-se bruscamente sobre ela (quem sabe se<br />

isto não lhe serviu de lição para audácias posteriores?), e gastei uma<br />

hora muito aborrecida obtendo um empate. Ele terminou seu conhaque<br />

e em seguida se despediu com passos pesados, muito satisfeito com<br />

aquele resultado (mon pauvre ami, je ne vous ai jamais revu et quoiqu’il<br />

y ait bien peu de chance que vous voyiez mon livre, permettez-moi de<br />

vous dire que je vous serre la main bien cordialement, et que toutes mes<br />

fillettes vous saluent). Encontrei Dolores Haze instalada à mesa da<br />

cozinha, consumindo uma larga fatia de torta, os olhos fixos no texto da<br />

sua peça. Em seguida, ergueu-os de encontro aos meus envoltos numa<br />

espécie de opacidade celestial. Manteve-se singularmente sem<br />

expressão ao ser confrontada com minha descoberta, e disse d’un petit<br />

air faussement contrit que sabia ser uma garota muito má, mas que<br />

simplesmente não fora capaz de resistir ao encantamento, e despendera<br />

aquelas horas destinadas à música — ó Leitor, Meu Leitor! — num<br />

parque público das proximidades, ensaiando a cena da floresta mágica<br />

com Mona. Respondi “muito bem” — e tomei o rumo do telefone. A mãe<br />

de Mona atendeu: “Ah, claro, ela está em casa” e bateu em retirada com<br />

o riso neutro de prazer materno contido de poder gritar dos bastidores<br />

“Roy no telefone!”, ao que no momento seguinte Mona deu sinal de ter<br />

atendido e, sem pausa, numa voz monótona mas não desprovida de<br />

carinho, começou a admoestar Roy por alguma coisa que ele tinha feito<br />

ou dito até eu interrompê-la, e em seguida Mona respondeu, em seu<br />

contralto mais humilde e sensual, “sim, senhor”, “claro, sr. Humbert”, “a<br />

culpa é toda minha, sr. Humbert, nessa história toda” (que elocução! que<br />

postura!), “é verdade, estou com muita vergonha dessa história” — e<br />

mais isso e mais aquilo, como dizem essas pequenas ordinárias.<br />

De maneira que desci as escadas limpando a garganta e com a mão<br />

no peito. Lo estava agora na sala, na sua poltrona gorda favorita.<br />

Enquanto se espalhava ali, mordiscando uma unha encravada e<br />

zombando de mim com seus implacáveis olhos vaporosos, o tempo todo<br />

fazendo balançar um banquinho sobre o qual apoiara o calcanhar de um<br />

pé descalço, percebi na mesma hora com um mal-estar instantâneo o<br />

quanto ela mudara desde que eu a vira pela primeira vez dois anos<br />

antes. Ou teria aquilo acontecido nas duas últimas semanas? Tendresse?<br />

Sem dúvida este mito estava demolido. Ela estava instalada bem no foco<br />

da minha cólera incandescente. O nevoeiro de todo o desejo fora varrido,

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