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companhia teatral em plena temporada de verão, vimo-nos<br />
naturalmente atraídos para lá numa noite clara de meados de junho. Não<br />
sei contar-lhes o enredo da peça que vimos. Algum texto trivial, sem<br />
dúvida, com alguns tímidos efeitos de luz e uma atriz principal bem<br />
medíocre. O único detalhe que me agradou foi uma guirlanda de sete<br />
pequenas graças, mais ou menos imóveis, pitorescamente pintadas, de<br />
pernas e braços nus — sete confusas meninas recém-entradas na<br />
adolescência envoltas em gaze colorida que tinham sido recrutadas<br />
localmente (a julgar pelo alvoroço de apoio em pontos esparsos da<br />
plateia) e supostamente representavam um arco-íris vivo, que se<br />
mantinha por todo o último ato mas teimava em ocultar-se<br />
provocativamente por trás de uma série de múltiplos véus. Lembro-me<br />
de ter pensado que essa ideia das cores-meninas fora copiada pelos<br />
autores da peça, Clare Quilty e Vivian Darkbloom, de um trecho de James<br />
Joyce, e que duas das cores eram exasperantemente adoráveis —<br />
Laranja, que não parava quieta em momento algum, e Esmeralda, que,<br />
quando seus olhos se habituaram à escuridão profunda do poço onde<br />
estávamos instalados, sorriu de repente para a mãe ou o seu protetor.<br />
Assim que a coisa chegou ao fim, e o aplauso manual — um som que<br />
meus nervos não toleram — começou a estalar à toda minha volta, pusme<br />
a empurrar e puxar Lo na direção da saída, em minha naturalíssima<br />
impaciência amorosa de vê-la de volta ao nosso bangalô de um azul<br />
neon naquela noite atônita e coalhada de estrelas: sempre digo que a<br />
natureza fica atônita com os espetáculos que contempla. Dolly-Lo,<br />
contudo, deixava-se ficar para trás, numa névoa rosada de vaguidão,<br />
seus olhos satisfeitos semicerrados, seu sentido da visão afogando a tal<br />
ponto os demais que suas mãos pendentes mal se entrechocavam na<br />
ação mecânica de bater palmas que insistiam em executar. Eu já tinha<br />
visto esse tipo de coisa em crianças, mas meu Deus, aquela menina era<br />
especial, contemplando com o brilho dos olhos míopes o palco distante<br />
onde percebi de relance os coautores do texto — um homem de smoking<br />
e os ombros nus de uma mulher notavelmente alta, com traços que<br />
lembravam um falcão e cabelos muito negros.<br />
“Você machucou de novo o meu pulso, seu brutamontes”, disse<br />
Lolita com voz fina quando se instalou no seu assento do carro.<br />
“Espero que você me perdoe, minha querida, minha adorada<br />
ultravioleta”, disse eu, tentando sem sucesso segurar seu cotovelo. E<br />
acrescentei, para mudar de assunto — para mudar o rumo do destino, ó<br />
Deus, ó Deus: “Vivian é uma mulher e tanto. Tenho quase certeza de que<br />
ela estava naquele restaurante ontem, em Soda.”<br />
“Às vezes”, disse Lo, “você é tão burro que dá raiva. Primeiro, Vivian<br />
é o homem dos dois escritores, e a mulher é Clare; e segundo, ela já fez<br />
uns quarenta anos, é casada e tem sangue negro”.