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Bom asno que eu era, não tinha decorado o número. O que restara<br />

dele na minha memória eram só a primeira das letras e o último dos<br />

algarismos, como se todo o anfiteatro de seis sinais tivesse sofrido um<br />

recuo côncavo por trás de um vidro colorido opaco demais para permitirme<br />

decifrar a série central de caracteres, mas translúcido o suficiente<br />

para revelar as duas extremidades — um P maiúsculo e um número 6.<br />

Entro nesses pormenores (que em si mesmos só poderiam interessar a<br />

um psicólogo profissional) porque de outro modo o leitor (ah, se eu<br />

conseguisse visualizá-lo como um estudioso de barba alourada e lábios<br />

rosados, tendo na boca la pomme de sa canne enquanto devora o meu<br />

manuscrito!) poderia não entender a qualidade do choque que senti ao<br />

perceber que o P adquirira a pança de um B, e que o 6 fora<br />

completamente eliminado. O resto, com rasuras e manchas que<br />

revelavam a agitada fricção da borracha presa ao lápis, com partes de<br />

números obliteradas e reconstruídas com uma caligrafia infantil,<br />

representava um emaranhado de arame farpado no caminho de<br />

qualquer interpretação lógica. A única certeza que eu tinha era do<br />

estado — adjacente ao de Beardsley.<br />

Não falei nada. Guardei o bloco, fechei o porta-luvas e conduzi o<br />

carro para fora de Wace. Lo pegara uma revista em quadrinhos no banco<br />

traseiro e, de blusa branca muito móvel, com um cotovelo bronzeado<br />

para fora da janela, mergulhou nas aventuras de algum polícia ou<br />

palhaço. Cinco a sete quilômetros além de Wace, parei à sombra de um<br />

local de piquenique onde a manhã despejara seu lixo de luz sobre uma<br />

mesa vazia; Lo ergueu os olhos com uma surpresa simulada mas sincera<br />

e, sem nada dizer, desferi-lhe um violento tabefe com as costas da mão<br />

que a atingiu bem no meio de seu pequeno malar quente e firme.<br />

E então o remorso, a doce pungência de uma reparação soluçada, de<br />

um amor rastejante, a desesperança de uma reconciliação sensual. Na<br />

noite de veludo, no Mirana Motel (Mirana!), beijei as solas amareladas de<br />

seus pés de dedos compridos, imolei-me... Mas nada adiantou. Ambos<br />

condenados estávamos nós. E logo eu havia de entrar num novo ciclo<br />

persecutório.<br />

Numa rua de Wace, nos arredores da cidade... Ah, estou certo de que<br />

não foi delírio. Numa rua de Wace, vi de relance o conversível vermelhoasteca,<br />

ou seu gêmeo idêntico. Em vez de Trapp, continha quatro ou<br />

cinco jovens ruidosos de vários sexos — mas não reagi. Depois que<br />

deixamos Wace, a situação mudou completamente. Por um ou dois dias,<br />

bastou-me a ênfase mental com que dizia a mim mesmo que não<br />

estávamos sendo, nem jamais fôramos, seguidos; e então fui tomado<br />

pela angustiante consciência de que Trapp mudara de tática e ainda nos<br />

seguia, num ou noutro carro alugado.<br />

Verdadeiro Proteu da estrada, com facilidade estonteante ele trocava

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