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no divã. “Coisas loucas, coisas sujas. Eu disse não, eu não vou [e usou, na<br />

verdade com total despreocupação, um asqueroso termo chulo<br />

americano que, em tradução literal para o francês, seria souffler] esses<br />

garotos nojentos, porque quero só você. E aí ele me pôs para fora.”<br />

Não restava muito mais a contar. Naquele inverno de 1949, Fay e ela<br />

tinham encontrado emprego. Por quase dois anos ela só — bem, só ficara<br />

de um lado para outro, trabalhando em restaurantes de cidades<br />

pequenas, e então conhecera Dick. Não, não sabia onde o outro estava.<br />

Nova York, talvez. Claro, era tão famoso que seria muito fácil encontrá-lo,<br />

se quisesse. Fay tentara voltar para o rancho, mas não existia mais —<br />

tinha queimado completamente num incêndio, e não sobrara nada, só<br />

um montículo de lixo calcinado. Era tão estranho, tão estranho —<br />

Ela fechou os olhos e abriu a boca, apoiando-se de novo na almofada,<br />

um dos pés calçados de feltro em contato com o chão. O piso de madeira<br />

era um tanto inclinado, e uma bolinha de aço teria rolado para dentro da<br />

cozinha. Eu já ouvira tudo que queria saber. Não tinha qualquer intenção<br />

de torturar minha querida. Para além do barraco de Bill, um rádio depois<br />

do expediente começara a cantar sobre o destino e a dor, e lá estava ela<br />

com a beleza arruinada e as estreitas mãos adultas de veias<br />

engrossadas, os braços brancos arrepiados, e as orelhas rasas, e as axilas<br />

malcuidadas, lá estava ela (minha Lolita!), definitivamente acabada aos<br />

dezessete anos, com aquele bebê que já sonhava dentro dela com um<br />

destino de ricaço e a aposentadoria lá por 2020 d.C. — e eu não<br />

conseguia parar de olhar para ela, e soube tão claramente como sei<br />

agora, que estou prestes a morrer, que a amava mais que tudo que já vi<br />

ou imaginei na Terra, ou esperei descobrir em qualquer outro lugar. Ela<br />

era só um eco de aroma tênue de violeta e folhas mortas da ninfeta<br />

sobre quem eu rolara no passado com tantos gritos; um eco à beira de<br />

uma ravina rubra, com um arvoredo esparso sob um céu branco, folhas<br />

castanhas entupindo o leito do riacho, e um último grilo perdido em<br />

meio à relva ressecada... mas graças a Deus não era só esse eco que eu<br />

adorava. O que antes eu acalentava nos cipós emaranhados do meu<br />

coração, mon grand pêché radieux, minguara de volta à sua essência: o<br />

vício estéril e egoísta, tudo aquilo eu cancelava e maldizia. Podem rir de<br />

mim, podem ameaçar esvaziar o tribunal, mas enquanto não me<br />

amordaçarem e garrotearem insistirei em proclamar minha pobre<br />

verdade. Faço questão de que o mundo saiba o quanto amei minha<br />

Lolita, aquela Lolita, pálida e poluída e prenhe de um filho alheio, mas<br />

com os olhos ainda cinzentos, os cílios ainda fuliginosos, ainda acaju e<br />

amêndoa, ainda Carmencita, ainda minha; Changeons de vie, ma<br />

Carmen, allons vivre quelque part où nous ne serons jamais séparés;<br />

Ohio? As matas de Massachusetts? Não fazia diferença, mesmo que os<br />

olhos dela desbotassem transformando-se em peixes míopes, que seus

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