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lambendo?” “É. Posso tentar?” “Claro”, disse ela. Com delicadeza fiz<br />

correr meu ferrão fremente por seu globo ocular salgado e giratório.<br />

“Que delícia”, disse ela pestanejando. “Saiu mesmo.” “Agora o outro?”<br />

“Seu bobo”, começou ela, “não tem na —”, mas então percebeu o<br />

pregueado dos meus lábios cada vez mais próximos. “Está bem”, disse<br />

ela em tom cooperativo e, debruçando-se sobre seu cálido rosto sardento<br />

virado para o alto, o soturno Humbert pressionou sua pálpebra trêmula<br />

com a boca. Ela riu, e roçou em mim ao sair correndo do quarto. Meu<br />

coração parecia estar em toda parte ao mesmo tempo. Nunca na minha<br />

vida — nem mesmo quando passava as mãos na minha menina amada<br />

na França —, nunca —<br />

Noite. Nunca experimentei agonia igual. Gostaria de descrever o<br />

rosto dela, seus gestos — e não consigo, porque meu desejo por ela me<br />

cega quando ela está por perto. Desgraçadamente, não estou<br />

acostumado à companhia de ninfetas. Se fecho meus olhos tudo que<br />

vejo é apenas uma fração imóvel de seu corpo, um fotograma ampliado,<br />

um súbito relance de adorável ínfera maciez quando, com um dos<br />

joelhos erguido debaixo da saia escocesa, ela se instala sentada para<br />

amarrar o sapato. “Dolores Haze, ne montrez pas vos chambes” (esta é a<br />

mãe dela que julga saber francês).<br />

Poeta à mes heures, compus um madrigal aos cílios negros de<br />

fuligem dos seus olhos vagos de um cinza-claro, às cinco sardas<br />

assimétricas de seu nariz arrebitado, à penugem loura de seus braços e<br />

pernas bronzeados; mas rasguei-o e hoje não consigo mais me lembrar<br />

dele. Só nos termos mais estritos (retornando ao diário) consigo<br />

descrever os traços de Lo. Posso dizer que seus cabelos são de um<br />

castanho acobreado, e seus lábios tão vermelhos quanto uma bala<br />

vermelha bem lambida, o inferior consideravelmente carnudo — ah, se<br />

eu fosse uma escritora mulher e pudesse pedir-lhe para posar nua à luz<br />

de uma lâmpada nua! Mas em vez disso sou o ossudo e desengonçado<br />

Humbert Humbert, com o peito lanoso, espessas sobrancelhas negras e<br />

um sotaque estranho, além de toda uma fossa de monstros putrescentes<br />

por trás do seu sorriso vagaroso e jovial. E nem ela é a criança frágil de<br />

um romance feminino. O que me leva à loucura é a natureza dúplice<br />

dessa ninfeta — de toda ninfeta, talvez; essa mistura na minha Lolita de<br />

uma infantilidade terna e sonhadora com o mesmo tipo assustador de<br />

vulgaridade emanado pelas beldades de nariz miúdo das ilustrações de<br />

anúncios e revistas, pelo rubor indistinto das criadas adolescentes da<br />

Inglaterra (cheirando a margaridas esmagadas e suor); e pelas<br />

meretrizes muito jovens que se disfarçam de crianças nos bordéis de<br />

província; e mais uma vez, tudo isso misturado à extraordinária ternura<br />

imaculada que insiste em percolar através da lama e do almíscar, da<br />

maldade e da morte, oh Deus, oh Deus. E o mais singular é que ela, essa

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