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1952, quando desci para recolher minha correspondência, o zelador<br />
miúdo e bilioso com quem sempre me indispunha de maneira execrável<br />
começava a queixar-se do homem que trouxera recentemente Rita em<br />
casa e tinha “vomitado como um cachorro” nos degraus da entrada do<br />
edifício. No processo de ouvi-lo e lhe dar uma gorjeta, ouvindo em<br />
seguida uma versão revista e bem mais simpática do incidente, tive a<br />
impressão de que uma das duas cartas que o bendito homem me<br />
trouxera era da mãe de Rita, velhinha maluca que certa vez eu visitara<br />
em Cape Cod e que sempre escrevia para os meus vários endereços,<br />
dizendo como era magnífica a maneira como a filha dela e eu<br />
combinávamos um com o outro, e como seria maravilhoso se nos<br />
casássemos; a outra carta que abri e logo examinei no elevador vinha de<br />
John Farlow.<br />
Muitas vezes reparei que tendemos a atribuir aos nossos amigos a<br />
estabilidade de tipo que os personagens literários costumam adquirir no<br />
espírito do leitor. Por mais vezes que possamos abrir o Rei Lear, jamais<br />
encontraremos o bom rei ostentando uma boa bebedeira em alto e bom<br />
som, entregando-se a largos folguedos, esquecidos todos seus<br />
tormentos, em animada reunião com as três filhas e seus respectivos<br />
cãezinhos de colo. E jamais Emma recobra as forças, reavivada pelos sais<br />
da lágrima que o pai de Flaubert deixa cair no momento perfeito. Seja<br />
qual for a evolução que este ou aquele personagem possa apresentar no<br />
universo contido entre as capas do livro, seu destino está fixado em<br />
nosso espírito, e, de maneira similar, sempre esperamos que os nossos<br />
amigos obedeçam a este ou àquele padrão lógico e convencional que<br />
fixamos para eles. Assim, X jamais haverá de compor a música imortal<br />
tão diversa das sinfonias de segunda com que nos acostumou. Y jamais<br />
cometerá um homicídio. E em circunstância alguma Z haverá de nos<br />
trair. Temos tudo bem-arrumado na mente e, quanto menos vemos uma<br />
certa pessoa, mais reconfortante nos é verificar o quanto ela segue<br />
conformada à ideia que dela temos, cada vez que nos chegam notícias<br />
suas. Qualquer desvio do destino que esperamos nos chocaria não só por<br />
ser uma anomalia, mas ainda por contrariar a ética. Preferiríamos jamais<br />
ter conhecido de todo o nosso vizinho, vendedor ambulante aposentado<br />
de cachorro-quente, se um dia ficarmos sabendo que ele acabara de<br />
produzir o maior livro de poesia de seu tempo.<br />
Digo tudo isto a fim de explicar o quanto me deixou desorientado a<br />
carta histérica de Farlow. Soube que sua mulher tinha morrido, mas<br />
esperava que ele tivesse continuado, por toda a sua viuvez devota, o<br />
homem contido e confiável que sempre fora. E agora ele me contava<br />
que, depois de uma breve estada nos Estados Unidos, retornara à<br />
América do Sul e decidira entregar todos os negócios de que cuidava em<br />
Ramsdale a Jack Windmuller daquela mesma cidade, advogado que nós