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estacionar no acostamento do fantasma que restara de uma antiga<br />

estrada da montanha, que ora acompanhava, ora atravessava, uma<br />

rodovia nova em folha, com sua população de ásteres banhando-se ao<br />

calor indiferente de uma tarde azul-clara de fim de verão. Depois de me<br />

virar do avesso à força de tanto tossir, descansei um pouco encostado<br />

numa pedra, e em seguida, achando que o ar fresco podia fazer-me bem,<br />

caminhei um pouco até um parapeito baixo de pedra do lado em que a<br />

estrada dava para o precipício. Grilos miúdos saltavam em meio às ervas<br />

ressecadas da beira da estrada. Uma nuvem muito clara abria seus<br />

braços e se deslocava na direção de outra um pouco mais substancial,<br />

pertencente a um sistema mais lento, mais carregado. Ao aproximar-me<br />

do receptivo abismo, adquiri consciência de uma unidade melodiosa de<br />

sons que se erguia como um vapor de uma pequena localidade de<br />

mineiros que se estendia aos meus pés, num dos braços do vale. Era<br />

possível distinguir a geometria de suas ruas entre os blocos de telhados<br />

vermelhos e cinzentos, os pequenos borrões verdes das árvores, um<br />

ribeirão serpentino, e o brilho intenso, sugerindo minério, do depósito de<br />

lixo da cidade e, para além da cidade, estradas cortando a colcha de<br />

retalhos de campos claros e escuros e, para mais além de tudo aquilo,<br />

imensas montanhas cobertas de árvores. Entretanto, ainda mais nítida<br />

que essas cores que se rejubilavam em silêncio — pois há cores e<br />

sombras que parecem ter prazer na boa companhia —, mais nítida e<br />

ainda mais sonhadora ao ouvido do que elas ao olho, era a vibração<br />

vaporosa dos sons somados que não cessava um momento sequer<br />

enquanto se elevava até a plataforma de granito onde eu me postara,<br />

limpando a minha boca vil. E logo percebi que todos esses sons eram da<br />

mesma natureza, que som algum além deles subia das ruas da cidade<br />

transparente, onde as mulheres estavam em casa e os homens não.<br />

Leitor! O que eu ouvia era apenas a melodia de crianças brincando, nada<br />

mais, e tão límpido era o ar que em meio ao vapor daquelas vozes<br />

combinadas, majestosas e mínimas, remotas e magicamente próximas,<br />

reveladoras e divinamente enigmáticas — podia-se ouvir de tempos em<br />

tempos, como que desprendido, um jorro quase articulado de riso<br />

animado, ou a pancada de um bastão na bola, ou o estrépito contido de<br />

um carrinho de brinquedo, mas na verdade tudo estava longe demais<br />

para que o olho conseguisse distinguir qualquer movimento nas ruas<br />

riscadas de leve no solo. Fiquei ouvindo aquela vibração musical da<br />

minha encosta distante, esses relances de exclamações isoladas com<br />

uma espécie de murmúrio contido a lhes servir de fundo, e então percebi<br />

que a coisa desesperadamente dolorosa não era Lolita ausente do meu<br />

lado, mas a voz dela ausente de toda aquela harmonia.<br />

Esta, portanto, é a minha história. Acabei de relê-la. Tem fragmentos<br />

de medula agarrados aqui e ali, um pouco de sangue e lindas moscas de

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