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capital (...) Comparecesse eu perante mim mesmo, condenaria Humbert<br />

a pelo menos trinta e cinco anos por estupro, negando provimento às<br />

demais acusações.” A morte de Quilty não é trágica. Nem o destino de<br />

Humbert. Nem Lolita. Mas Lolita é trágica, em sua existência encurtada.<br />

Se a tragédia explora o desperdício de energia e possibilidades<br />

frustradas, Lolita é trágica — claramente trágica. E o mistério continua.<br />

Como Nabokov acomodou a história dela nesta narrativa tão rápida de<br />

trezentas páginas — num livro tão embaraçosamente engraçado, tão<br />

irresistivelmente inspirado, tão impossivelmente vivaz?<br />

A literatura, como já foi dito, não é a vida; e acima de tudo não é a<br />

vida pública; nela não existe a “questão do caráter”. Pode ser um belo<br />

bônus saber que Nabokov era um homem generoso. É o que toda a<br />

parafernália biográfica nos diz. Na verdade, é o que nos diz tudo que ele<br />

escreveu. É o que nos diz Lolita. Mas isso não se dá de maneira retilínea.<br />

Lolita é um livro cruel sobre a crueldade. É generoso na medida em que<br />

o inimigo do nosso inimigo é nosso amigo, por mais repelente que nos<br />

seja o seu aspecto. Como crítico, Nabokov tinha uma sensibilidade acima<br />

da média para a crueldade literária. Aqueles de nós que forcejam para<br />

atravessar Cervantes, desconfio eu, depois de um choque inicial,<br />

acostumam-se divertidos às “infinitas sovas” recebidas e suportadas pelo<br />

magro fidalgo. Em suas Conferências sobre Don Quixote, porém,<br />

Nabokov mal consegue obrigar-se a contemplar as automáticas e<br />

escandalosas “torturas” desse “antigo livro cru e cruel”.<br />

O autor parece planejar as coisas da seguinte forma: Venha comigo, desagradável leitor,<br />

que acha graça em ver um cachorro inflado e chutado de um lado para outro como uma<br />

bola de futebol; leitor, que aprecia, numa manhã de domingo, indo ou voltando da igreja,<br />

atingir com a ponta da bengala ou com cuspe um pobre vagabundo preso ao pelourinho,<br />

vem... Espero que irá divertir-se com o que tenho a lhe oferecer.<br />

Ainda assim, Nabokov é o grande mestre da crueldade. A crueldade mal<br />

se manifesta noutras paragens; todos os Lovelaces e Osmonds acabam<br />

por se revelar, num exame nem tão detalhado, meros desordeiros e<br />

tiranetes se comparados a Humbert Humbert, a Hermann Hermann (seu<br />

significativo precursor) em Desespero, a Rex e Margot em Riso no escuro,<br />

a Martha em Rei, dama, valete. Nabokov entendia a crueldade; era-lhe<br />

sensível; conhecia suas entonações particulares — como nesta<br />

construção impecável de Riso no escuro, onde, depois da “precisão”<br />

muito bem colocada, o resto da frase desaba e cai na crueldade<br />

rotineira:<br />

“Pode me beijar”, soluçou ela, “mas não desse jeito, por favor”. O jovem deu de ombros<br />

(...) Ela voltou para casa a pé. Otto, que a vira sair, deixou cair o punho no pescoço dela<br />

e em seguida chutou-a com precisão, fazendo-a cair e machucar-se contra a máquina de<br />

costura.

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